Sobre morte, amor e paternidade



Nelson Soares dos Santos.

Tenho de confessar que com trinta e sete anos vividos nunca tinha pensado em minha própria morte, mesmo sendo a morte um elemento presente em meus estudos, leituras e questões do cotidiano. Entrei em contato com a morte aos dez anos de idade quando faleceu um tio, que segundo minha mãe era muito parecido comigo em personalidade. Depois, estive de frente com a morte vendo meu pai perder suas últimas forças, consciente de que havia chegado a hora dele. Recentemente, estive com a morte no enterro da minha avó, e na semana seguinte de um Tio muito querido, a quem amava como pai. Em todas estas situações, pessoas que eu amava foram levadas, partiram, na hora esperada por elas.
O meu pai, horas antes da morte chamou todos os filhos para estar no quarto com ele, pediu que cada um fizesse uma oração, e ao final, na última oração, fechou os olhos e se foi. Minha avó, um mês antes falou comigo ao telefone e pediu que eu levasse logo minha filha para conhecê-la pois a hora dela chegaria a qualquer momento. Meu tio, no enterro da minha avó, abraçou-me calorosamente e disse que queria lembrar sempre de mim alegre como eu estava, querido por todos, por que poderia ser o nosso último abraço. Abracei-o novamente e disse que esperava abraçá-lo muitas vezes; ele olhou-me sorriu e abraçou-me mais uma vez.
Não chorei em nenhuma destas mortes, mesmo sendo de pessoas que amava muito. Desde criança aprendi a acreditar na vida após a morte, e de alguma forma, isso é uma certeza tão grande dentro de mim que não consigo ver a morte como um momento de tristeza. Hoje, no entanto, pela primeira vez, fui forçado a pensar em minha própria morte, e a primeira coisa que me vem a mente agora, é por que nunca pensei em minha morte antes. Terá sido pelo fato de que morte não está presente na filosofia? Marilena Chauí diz que a morte é a única coisa que em vida não nos é possível filosofar sobre ela. E, a doutrina budista nos diz que a morte é de fato um momento importante da vida. Eu, desde muitos anos, tenho uma admiração pela morte. Quando alguém nasce todos fazem festa, quando morre, alguns choram. A morte não é vista como algo bom por um grande número de pessoas, no entanto, ela faz o trabalho dela em silêncio com a mesma responsabilidade da vida entendida como nascimento. Como todos nascem todos morrem. A vida e a morte trabalham de forma igual, uma recebe todas as glórias, a outra, é ignorada, e, apesar disso, continua diuturnamente fazendo o seu trabalho.
Admirador da morte, crédulo de que nascimento e morte são duas etapas de uma mesma história; nunca tinha pensado em minha própria morte. Duas ou três vezes ameaçado de morte, lidei com segurança e destemor,  Hoje, fiquei de frente com ela. E tudo aconteceu de forma simples. Todos os dias quando coloco minha filha para dormir conversarmos sobre a vida, o dia dela, o meu dia, e, sobretudo sobre planos para o futuro. Sim, desde que minha filha aprendeu a falar estamos sempre planejando o futuro: que presente ela vai ganhar no próximo aniversário, dia das crianças, natal, ano novo; se eu vou cantar para ela dormir no dia seguinte, levá-la para escola, buscar na escola, se vamos almoçar juntos, onde vamos passear no fim de semana e segue assuntos dos mais interessantes. Este ano, ao discutir sempre os problemas do dia a dia dela, tem sempre aquela discussão com a colega de classe, como lidar com a violência, chantagem, amizades, etc.
Hoje, depois de conversarmos bastante, afinal já fazia dois dias que não a colocava pra dormir e tinha de colocar a conversa em dia; ela me surpreendeu e  disse que estava pensando em um problema sério e difícil de resolver. Como sempre eu pedi que falasse do problema e que se eu conseguisse, a ajudaria. Ela, de imediato, já disse: - não sei pai, acho que  neste você não vai poder me ajudar.
Ainda mais surpreso insisti.
- Conte, como sabe que não vou poder lhe ajudar se não falar.
Ela respondeu:
_ Então tá. É que não sei como vou continuar vivendo depois que você morrer. Se você morrer, não vai mais me colocar para dormir, não vai vir no meu quarto, e nem vai me dizer que me ama muito. E nem eu vou poder dizer que te amo.
Confesso que fiquei atordoado. Nunca havia pensando em minha morte. Fiquei em silêncio, pensando. Pela primeira vez estava diante de mim um ser humano preocupado com a possibilidade de minha morte. E , antes que eu falasse alguma coisa ela continuou:
__ Olha pai, pode ficar tranqüilo, eu não vou deixar você sozinho lá no caixão. Vou escolher uma boneca da Barbie, a que eu mais gostar de todas as que você já me deu, e vou colocar junto de você, então, você não vai sentir saudade de mim. E vou guardar os teus livros comigo, assim eu não vou sentir saudade de você, por que meu coração é feito de brinquedos, e o seu é feito de livros.
Eu, já ali, calado, olhando para o teto, fiquei mais ainda sem palavras. Em tão pouco tempo minha filha ensinava-me tantas coisas sobre amor, carinho, afeto e paternidade. Então ela me abraçou, disse que me amava muito, e que no nosso próximo aniversário ( nós fazemos aniversário um dia seguido do outro), íamos comemorar juntos, com um bolo em um parte escrito meu  nome, e na outra parte, o nome dela, separando as duas partes, um coração; que ela fez questão de exemplificar utilizando uma mão minha e a outra dela para fazer um coração.
Quando eu pensei que ela já havia dito tudo, ela saiu com algo que eu não havia ensinado ainda ela. Ela disse:  - Pai, eu posso pedir uma coisa pra você?
Eu disse: - Pode filha, depois desta declaração tão grande de amor pode pedir qualquer coisa. Então pensei que ela pediria mais uma boneca da Barbie, e qual foi minha maior surpresa quando ela disse:
_ Sabe, pai quando você morrer, eu quero que em outra vida, viver de novo com você; por que dizem que a gente morre e nasce de novo, então eu quero nascer de novo pra viver com você.
Não preciso dizer que a esta altura eu já estava emocionado. Nunca havia pensado em minha morte, e, foi lindo ouvir de minha filhota que gostaria de viver sempre comigo. Eu sei que muitos sofrem com  a morte, mas no silêncio que se seguiu, entre abraços e beijos, senti que o amor que existe entre eu e minha filha transcende a própria, e, apenas por que é um amor além da vida, é que é possível nos prepararmos juntos para morte. A certeza de que a morte é apenas uma etapa da existência, e de que aqueles que se amam verdadeiramente nunca estão separados, cresceu ainda mais dentro de mim.
A morte é a grande incerteza do amanha, do momento seguinte, do instante seguinte. É por que somos pequenos e nos iludimos pensando que somos grandes que sofremos com a idéia da morte. A morte é aquilo que nos lembra sempre que o momento seguinte pode ser o último da nossa existência; que o nosso corpo pode ser daqui alguns minutos nada mais que uma matéria inanimada. A morte, é este algo que amedronta os prepotentes e orgulhosos, arrogantes e destemidos, e que mostra sempre uma passagem suave para os simples e humildes.
Tenho visto muita gente sofrendo com a morte. Sofrerão menos quando olharem para dentro de si e conseguir ver a centelha espiritual que a todos habita; que afinal, este mundo não é o único lugar de existência; e que neste corpo não é a única forma de existirmos. Sofrerão menos  quando entenderem que o verdadeiro amor não tem nada com a idéia de posse; e que estar junto nem sempre é estar perto. Nascimento e morte são apenas dois pontos de transição; o primeiro para esta vida de sofrimento que conhecemos bem; o segundo, para o desconhecido, mas que uma consciência tranqüila do bem que fazemos nos fazer transladar em paz.

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