Entre a Sandice e a Razão
Nelson Soares dos Santos
É madrugada. Do meu lado uma pilha de livros de Bachelard, de outro, uma
pilha de livros sobre ocultismo. Ao lado do computador sobre a mesa onde
escrevo “Espumas Flutuantes” de Castro Alves; “O Paradoxo da Moral” de Vladmir Jankélevitch,
“A cabala da Saúde e do Bem – Estar” de Mark Stavish, “As Quarenta Questões
sobre a Alma” de Jacob Boheme, e, “Dos erros e da Verdade” de Louis-Claude de
Sam-Martim. Todos estes livros vieram a memória ao ler dois livros de Kabala,
um de Michael Laitmam – “Alcançando Mundos Superiores” e, outro, “A Kabala do
Dinheiro” de Nilton Bonder. Foram mais de cincos dias intercalados de leituras,
estudos, comparações e lembranças de tantos livros lidos ao longo da vida que
nos leva a esta busca intensa de uma verdade que nos guie na travessia da
existência. De tudo isso, foi uma lembrança de uma passagem de “Memória
Póstumas de Brás-Cubas” que me fez escrever este texto.
Tenho e sempre tive uma
paixão espiritual por Machado de Assis e de seus livros nenhum marcou mais que
“Mémórias Póstumas de Brás-Cubas”. Brás Cubas é o realista que parece nunca ter
encontrado o que buscava no mundo e por isso sai dele escrevendo “ com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Talvez por isso o
livro tenha me chamado tanto a atenção desde os meus tenros doze anos de vida.
Confesso que sempre tive dificuldade de acreditar no amor, nas pessoas, na
vida, e por isso, talvez, meu rosto tenha sorrido e meu olhar brilhado quando
pela primeira vez li o discurso de abertura do enterro de Brás-Cubas, e quando
eu, já quase emocionado li as frases seguintes –
“
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto
de 1869, na minha bela chácara de catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos,
rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui
acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve
cartas nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – um chuvinha miúda, triste
e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis de última
hora a intercalar esta engenhosa ideia
no discurso que proferiu à beira de minha cova: - “ Vós, que o conhecestes,
meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a
perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a Humanidade.
Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul
como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói a natureza as
mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado”.
Pode o prezado leitor agora imaginar os sentimentos de um menino de 12
anos lendo tal livro, depois de já ter devorado Monteiro Lobato, José de
Alencar, dentre outros. A emoção do anúncio da morte aos sessenta e poucos anos
e com saúde, foi seguida de raiva. Quão ingratos os amigos, apenas onze
amigos!! E logo depois, a calma, - afinal, chovia, mas... chuva fina, miúda.
Sim, eram mesmos ingratos os amigos. O menino se consolava com a presença dos
onze amigos e se perguntava se teria um dia onze amigos. O cruel disso tudo é
que o menino agora com 38 anos ao refletir sobre os anos vividos já não sabe se
tem onze amigos para acompanha-lo ao cemitério. A ideia engenhosa do amigo
orador, tenho de confessar, levou-me lágrimas aos olhos, e até hoje, toda a vez
que releio, mesmo já sabendo o desfecho irônico, ainda sinto uma fagulha de
emoção. Temos de admitir que as palavras são belas, e por isso mesmo,
impossível não se desatar a rir quando se lê no parágrafo seguinte: “Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das
vintes apólices que lhe deixei”.
No entanto, não foi esta passagem o motivo principal da lembrança de
Brás-Cubas nesta madrugada. Na verdade, estava eu a refletir sobre fé e razão,
razão e formação do espírito científico quando me lembrei da pequena passagem
dos delírios de Brás Cubas cujo título
quase tomei emprestado para este texto por falta mesmo de criatividade:
VIII
– Razão contra a Sandice.
Já
o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e convidava a sandice
a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:
La
Maison est mói, c’est à vous d’em sortir (
A casa é minha; você é quem devia deixa-la)
Mas
é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo que, apenas
senhora de uma, dificilmente lha farão despejar. É sestro; não se tira daí; há
muito que lhe calejou a vergonha. Agora, se advertirmos no imenso número de
casas que ocupa, uma de vez, outras durante as suas estações calmosas,
concluiremos que esta amável peregrina é o terror dos proprietários. No nosso
caso, houve quase um distúrbio à porta do meu cérebro, por que adventícia não
queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu.
Afinal, já Sandice se contentava com um cantinho no sótão.
_
Não, senhora – replicou a razão - , estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada
e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar,
daí à de visitas e ao resto.
_
Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério...
-
Que Mistério?
_
De dois – emendou a Sandice -; o da vida e o da morte; peço-lhe uns dez
minutos.
A
razão pôs-se a rir.
_
Hás de ser sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa....sempre a mesma
coisa.
E,
dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e
fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas
desenganou-se depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi
andando.
O leitor que conhece o
que é kabala deve estar se perguntando como uma leitura básica de um livro
acompanhado de consultas a Bíblia, ao Zoar e ao Talmude pôde me levar a tal
citação. É simples de explicar. É que depois de dias estudando o alfabeto
hebraico, compará-lo com o sânscrito, o grego, o latim e o aramaico em busca de
certas respostas, encontrei uma reflexão simples, e talvez simplória: Não
existe pior sandice na humanidade do que quando homem confunde egoísmo com altruísmo,
é tão cruel, e de uma profundidade egoística tão grande que quanto mais se
finge altruísta mais o homem enterra-se no egoísmo inevitável. É como aquela
também, historieta do diabo que chega na sua casa e pede um espaçozinho bem
pequeno que caiba apenas um prego, e, no dia seguinte volta com alguma coisa
para pendurar no prego, de tal forma, que logo está ocupando a casa inteira.
As Sandices nossas de
cada dia.
Não é difícil encontrar
sandices do nosso tempo. E se o leitor não for muito preguiçoso pode tomar nas
mãos o livro de Machado de Assis e ler as páginas anteriores a citação aqui
referida. Verá eu tenho consciência de que cada século possui suas ilusões. E a
ilusão dos homens do nosso século é pensar que a ciência evoluiu de tal forma
que por si só, o homem já é capaz de encontrar a felicidade; pensa-se que a
liberdade de vontade que faz do homem um individuo é a solução; e é esta
solução que nos leva a uma sociedade que se adoece, um mercado contaminado pelo
egoísmo exasperado que sobrevive do roubo e da trapaça.
Do estudante que acredita
ser a nota a substituta do esforço pelo conhecimento, do diploma a solução para
a vida sem o esforço da formação humana; do empresário que acredita que o ter a
qualquer custo o torna rico; da donzela que acredita ser possível a construção
de um lar sem os valores morais; do jovem que confunde liberdade com
leviandade; a Sandice é quem expulsa a razão. Já não existe lugar para a
justiça e honestidade. A razão vive no sótão quando não nos lixões da miséria.
Os palácios estão embelezados de tal forma pela sandice que a galhofa e a
melancolia já não produzem nenhuma graça ao transeunte desavisado e o humor
transformou-se em agressão. Já não existe mais nenhum humanismo.
Transformamo-nos em máquinas e animais.
Já não existem mais vagas
nas clínicas de Psicologia. As mulheres casadas já até tricotam enquanto
esperam sua vez, como se fosse um salão de beleza do passado. O emplasto de
Brás-cubas bem faria sucesso, e ele já estaria milionário, tamanha é a
necessidade que tem homens e mulheres de fingirem-se doentes nos consultórios
médicos e de psicólogos, quando o único remédio realmente necessário seria assumir
as próprias responsabilidades, ou talvez o tamanho da própria maldade; mas neste caso Madame Bovary ficaria corada de vergonha ao ouvir os relatos de
suas herdeiras, e até mesmo Mefistófeles
se esconderia do horror no qual se transformou a arte de transformar mentiras
em verdades.
Parece que estamos no
pior espaço do Inferno de Dante. A razão vive maltratada e já não encontra
lugar, sequer nas Academias, lugares que foram devotados à ciência. Nelas,
mérito se confunde com compadrios; e agora com as cotas ( que se diga que se
sou a favor da Inclusão Social dos negros), o direito de nelas estar parece
negar a necessidade do esforço e da disciplina na busca pela formação e
auto-formação no processo de Auto-conhecimento. A autonomia vai sendo jogada no
lixo em nome de políticas equivocadas de inclusão social. Já não há mais nem
sótão para a Razão. Logo ela terá de voltar para lugares ocultos e a sandice
reinará absoluta nas mentes e nos corações.
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