Para ver o nascer do Sol
Nelson
Soares dos Santos
Quando era criança, tinha por volta de uns dez anos, costumava sair de
madrugada nesta época do ano para ir a Olaria fabricar tijolos com o meu pai. O
caminho, trilhas de cavalos e pedestres por entre pastos e matas costumavam
estar infestados de cobras e todos os tipos de bichos. No caminho, tinha um rio
chamado de Galheiros. Tínhamos de atravessá-lo, e por vezes, as águas chegavam
a cintura. Meu pai, sempre repetia o mesmo conselho: “Caminhe com atenção, pise
com cuidado, sinta sempre os pés no chão. Nesta hora da noite quando ainda está
escuro todos os bichos saem de suas tocas e é hora preferida das cobras estarem
nas barrancas dos rios. Ande com cuidado se quiseres ver o sol nascer”. Assim
caminhávamos em silêncio ao lado um do outro, por vezes, meu pai na frente e eu
atrás. Andávamos rápido, pois tínhamos pressa de chegar a Olaria, pegar a
foice, descer nos buracos encharcados e amassar o barro. O barro frio sob
nossos pés, o suor já em nossos corpos. Ali ficávamos por vezes cantando enquanto
a labuta seguia, por vezes, o silêncio era quebrado apenas pelo corte da foice
no barro. Todo esforço era feito com o objetivo de que, pelo menos 300 tijolos
já estivessem lançados quando o sol nascer. E quando o sol começava a lançar os
seus raios, parávamos, e enquanto tomávamos café, eu sonhava com o dia em que
pudesse viver a história dos livros que lia nas horas vagas. Não consigo
esquecer de um amigo, o Zé de Corcino que dizia sempre na hora do café : Este rapaz
ainda vai ser doutor, é muita vontade de aprender pegar um livro pra ler depois
de ficar três horas dentro deste barro frio.
O tempo passou e hoje não faço mais tijolos. Nesta madrugada a lua
caminha para o quarto minguante, tempo bom, diria meu pai, para queimar os
tijolos. Na direção do Partido Popular Socialista, educador, que tenta ser
político, sente-se como quem ainda anda no meio do mato, no escuro da madrugada
prestes a atravessar o rio na espera de quando o sol nascer todo o barro tenha
se transformado em tijolos e possa sentar, contemplar o nascer do sol, olhando
para a obra, que agora quer que seja
melhorar a vida do povo. O que vejo e
sinto porém, é que as cobras estão a soltas. Os bichos saem e vagueiam no meio
do mato a procura de uma vítima descuidada que não olha onde pisa.
Outro conselho meu pai me dava quando estava a cavar o barro: “ Preste
atenção menino, aprenda a discernir o barro bom da areia fofa, senão pode até
se enganar enquanto amassa, mas quando cortar o tijolo na forma e for lancear,
ele vai se desmanchar e todo o trabalho estará perdido”. Quando cá estou a
garimpar ideias de como melhorar a vida do povo sinto-me o mesmo menino a
procura do barro bom. Não adianta amassar o barro ruim, semear em areia fofa
não produzirá senão tijolos que vão se tornar areia, senão quando lanceados,
quando colocados na fogueira para queimar, sim, por que o tijolo bom quando se
queima fica vermelho, forte como pedra e água não o desmancha. Há muito barro
ruim na política. É preciso cavar em profundidade para encontrar barro bom. E
pior, parece que existe areia misturada a todo tipo de barro.
Meu pai também costuma dizer que havia dois males que, uma vez os tendo o
oleiro, os tijolos eram ruins. A fraqueza, pois esta impedia que o barro fosse
bem amassado, e barro mal amassado era sinal de tijolos cheios de furos; e, a
preguiça; se houvesse demora para cortar o barro e lancear os tijolos, o barro
endurecia e teria que jogar nova água, e barro duas vezes amassado enfraquecia
os tijolos. Temo que também existam dois males que estão atacando a nossa
sociedade e impedindo a construção de tijolos bons, que uma vez passados pelo
fogo não se desmanchem: a fraqueza moral que se traduz em corrupção e a
preguiça que se traveste de falso moralismo.
Temos que, de um lado combater incessantemente a corrupção. Esta é hoje
alimentada pelo pragmatismo utilitarista, que transforma o levar vantagem em
utilidade e individualismo em individualidade. A corrupção está em todos os
lugares e combate-la torna-se mais que um discurso, torna-se princípio para os
políticos que fazem a política de forma amorosa e solidária. Ser honesto é
desafio cotidiano, nas práticas, nos discursos e nas relações. Do outro lado
está o falso moralismo das elites. Ora, as elites devem deixar os seus lugares
de amos preguiçosos e decidir viver de produtividade. A preguiça é tão grande
que torna o moralismo tão falso que ninguém acredita mais no que fala. Nem a
elite acredita no que a elite diz. O povo, até para contrapor, mergulha ainda mais no pragmatismo
utilitarista que destrói todos os valores da vida em sociedade, transformando
tudo em mercadoria e degradando assim o aspecto mais nobre da humanidade que é
a capacidade de amar.
É preciso de novo coragem para sair de madrugada, andar no meio do mato,
atravessar o rio no meio da escuridão, separar o barro, pegar a foice, sentir a
frieza do barro sobre a pele, deixar o suor correr pelo corpo no esforço de
transformar o barro em tijolo. Cortar o barro, caminhar, lancear. É preciso
coragem para não desanimar. E por fim, esperar o sol nascer. Por que o Sol
haverá de nascer. E quando o sol nasce podemos já deitar sobre a relva por que
o sol espanta os bichos, as cobras voltam para as tocas, o orvalho alimenta as
plantas e uma alegria toma conta do ambiente enquanto os pássaros cantam em uma
orquestra divina que mais parece à voz dos anjos cantando a grandeza de sermos
humanos. Sim, amigos, como naquela época o sol nascia e secava o barro dos
tijolos já lanceados, o sol haverá de nascer. Então tenhamos coragem. Tenhamos
coragem apenas um pouco mais.
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