O Racismo nosso de cada dia.
Nelson Soares dos Santos
Hoje
estive na FNAC no Shopping Flamboyant, como o objetivo de adquirir um livro que
li na adolescência e que sempre senti que marcou muito minha formação
espiritual, social e intelectual. Trata-se da obra "O Elogio da
Loucura" de Erasmo de Roterdam, e, por ora, desejava adquirir o tão
sonhado "Esfera Pública Burguesa " de Habermas e " O mundo como
vontade de representação" de Artur Schopenhauer. Quando olhava o livro
"O pequeno Príncipe" que planejava comprar para minhas filhas, uma
garota de mais ou menos 16 anos interpelou-me:
_
Você é vendedor? Perguntou ela.
Olhei
fixamente, para ela, como quem dizia – veja se estou vestido de vendedor, veja
se estou com crachá -, entretanto ela olhou-me com ar de autoridade e
superioridade e disse:
-
Você não me ouviu? Eu perguntei se você é vendedor.
Continuei
olhando fixamente para ela e em silêncio, quando ela olhou-me mais uma vez e disse:
-
Ah, deixe pra lá.
Diante
do português coloquial dela, resolvi levar aquela conversa adiante e disse:
-Você
perguntou se eu sou vendedor, e se fez esta pergunta é por que algo em você diz
que eu posso ser um vendedor, certo?
Já
meio sem jeito ela disse:
-
Por que? Você não é vendedor?
-
Não tenho problema em ser um vendedor pra você, o que está mesmo procurando?
Ela
disse o nome de dois livros e eu disse, vamos então até a prateleira de
literatura para procura-los. Enquanto isso, comecei a perguntar a ela onde morava, que série
estudava, qual colégio, o que os pais dela faziam, etc.
Depois
de responder as perguntas ela olhou-me novamente e disse: Você não é vendedor?
Então
eu disse:
_
Você inicialmente pensou que fosse vendedor, agora desconfia que eu não sou um
vendedor; então diga-me o que fez com você pensasse que sou um vendedor e agora
leva você a desconfiar que eu não seja o vendedor?
Ela
disse sem titubear:
-
Não existem muitos vendedores que já leram todos os livros que a gente procura.
– Olhou-me novamente, e já bastante sem graça, aquietou-se: _ Moço,
desculpe-me, desculpe-me mesmo, eu ter pensado que você é um vendedor.
Enquanto
isso uma vendedora negra chegava perto de nós, no que eu disse, olhando para o
crachá da moça e chamando-a pelo nome:
-
Olha, eu ajudei esta garota a encontrar os livros que procurava e me comportei
como um vendedor para ela, por isso quero parte da comissão de vendedor.
Olhando
novamente para a garota perguntei:
-
Diga-me agora que sabes que não sou um vendedor, o que levou você a pensar que
eu era um vendedor?
Ela
olhou-me novamente e disse, ainda com aquele ar da pura inocência de uma menina
de 15 anos, do primeiro ano do Ensino Médio, estudante do Colégio Objetivo de
uma cidade do Interior:
É.
Não sei. Até por que você não usa as roupas de vendedor, não usa o crachá de
vendedor, mas acho que foi pela aparência.
Então
eu disse a ela:
-
Mas veja, se não uso crachá e sequer estou com roupas parecidas com as roupas dos
vendedores ( eu estava de roupas claras e os vendedores utilizam roupas
pretas), o que mesmo na minha aparência fez com que você achasse que eu fosse
um vendedor?
Ela,
já extremamente sem graça, mais uma vez se desculpou de forma sincera. Então eu
disse a ela, encerrando a conversa, e saindo:
Talvez
não seja sua culpa, mas você é racista, menina. Carrega em você um triste e
oculto racismo que pode afastar de você oportunidades maravilhosas na vida.
Quando
me afastava eis que a insistente garota pergunta:
-
Então, você é professor?
Sorri,
ironicamente, da forma como todas as pessoas que me conhecem ou foram meus
alunos já me viram sorrir e disse:
-
Sou formado em Pedagogia, fiz Mestrado em Educação Brasileira, e até tenho um
doutorado incompleto. Já fui professor do Ensino Fundamental, Médio e Superior,
agora não estou mais em sala de aula.
Ela,
incontinenti, questionou o porquê de ter deixado a sala de aula, se demonstrava
conhecer e ter lido tantos livros, que segundo ela, alguns professores dela não
teria lido nem metade dos livros que a recomendei como caminho para uma boa
formação no Ensino Médio.
Sorri,
mais uma vez, ironicamente, com um pouco de raiva dentro do meu coração, um
pouco de dor, insatisfação, indignação e respondi, finalizando a conversa e
saindo definitivamente:
Eu
deixei a sala de aula, entre outras razões, por que me cansei de ser confundido
com vendedores.
Dito
isso, escolhi meus livros, e retornei a mesma vendedora, uma bela morena de
cabelos lisos, que enquanto somava os livros disse-me:
-
Amei o que você fez. Você é um verdadeiro professor, deu uma aula para aquela garota
que ela nunca mais vai esquecer. E você está certo. Minha mãe é branca e meu
pai é negro. Quando saio com meu pai ninguém questiona se sou ou não filha
dele, mas quando saio com minha mãe, em tudo quanto é lugar que chego perguntam
se ela é minha mãe. É triste lidar com este racismo todo dia.
Eis
o racismo de nosso de cada dia.
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