O preconceito e as questões morais – O diálogo possível entre a vida e a literatura.
Nelson Soares dos Santos
(Texto rascunho para exemplificar aos alunos como podemos pensar a moral por meio da literatura)
Eu tive contato com o preconceito, pela primeira vez, aos dez anos de idade. Era folia de reis e pintava na mente e no coração os primeiros olhares para as meninas. O pouso da Folia era na casa do Seu Licândio, compadre do meu pai. Ele tinha três filhas mais ou menos na mesma idade que eu e meu Irmão José Soares; era a Hildene, Elisdene, e a outra não me lembro o nome agora. Eu tinha olhares para a Elisdene que entre um e outro olhar disse para que eu ouvisse, não namoraria aquele neguinho feio, que era eu.
Meu segundo contato com o preconceito foi aos doze anos. Eu estava na sexta série e apaixonei perdidamente por uma moça loira de nome Andréia Tavares. Era filha da professora de Português. Não preciso dizer que a história teve um fim terrivelmente triste, deixando traumas dos quais só fui me livrar fazendo psicanálise já no ano de 2003, quando concluía o mestrado em Educação. Os traumas estavam impedindo que eu conseguisse escrever a Dissertação de Mestrado. Esta é uma das razões pelas quais penso que pensar é psicanalisar a vida. Uma outra loira a que se chamava Ana Cordeiro, e que todos tratavam pejorativamente de Ana Pombo, deu-me aceitação para que o estrago não fosse maior, e, até mesmo a Silvana, irmã da dita cuja que machucou terrivelmente meu coração, era amiga e solidária – não sei se a minha dor, mas era amiga e solidária.
O preconceito que eu enfrentava não era apenas por ser negro, era também por ser pobre, por que meu papai bebia e sempre era visto bebâdo, nas ruas, nos fins de semana, e por que não tinha roupas. Sim, não tinha roupas. Amigos que ajudavam-me a enfrentar a dor do preconceito eu tinha dois, cujas lembranças são especiais: Wagner, exímio jogador de futebol, que não fosse o mal que as religiões causam as mentes juvenis, teria sido um dos maiores profissionais de futebol do nosso país; E Manoel Alves, cuja talento para jogar futebol era proporcional a pouca vontade que tinha para estudar. Felizmente, ambos venceram na vida e são exemplos de cidadania. Eles não apenas colocavam-me para jogar em seus times, com minha cabeça grande, pernas tortas, e totalmente perna de pau; como faziam todo esforço para que eu fosse aceito em todas as brincadeiras. Um dia ganhando na mega sena não esquecerei deles, nem tão pouco de tantos gols que perdi, só eu e a trave. Ao Wagner carrego a doce lembrança de ter tornado-me, em solidariedade a ele, torcedor do Vasco e que hoje tem me dado muitas alegrias.
No internato sofri pouco com o preconceito, devo admitir. Tinha amigas maravilhosas, admiradoras, das quais tenho as mais doces lembranças. Entretanto, foi o preconceito não dos outros, mas que existia dentro de meu ser que separou-me do meu grande amor. Eu não consegui aproximar-me por que não acreditava que merecia uma pessoa tão linda, tão doce, tão suave. Era uma deusa aos meus olhos e eu sentia-me um farrapo humano no mundo. Todas estas dores e angústias interiores eram agravadas pelo tratamento preconceituoso de dois professores em especial: O professor Jairo, e o Professor Osvaldo, um funcionário, o Chefe da Manutenção, - Danilo, e o professor de Educação Física – Willer Cavalcante Prego. Tempos depois a esposa do professor Prego, a que eu admirava muito, disse-me que foi coisa construída na minha cabeça, e que ele jamais teria preconceito contra um aluno. Não sei se é verdade, nunca conversei com ele.
Outra perda causada pelo preconceito foi a possibilidade de ter construído uma bela amizade com uma colega, filha do professor que eu admirava no colégio. Eu pensava que ela era racista. Anos depois, descobri que ela nunca foi, até tinha e tem preferência por negros, e que tinha medo de aproximar e sofrer preconceito, pois já havia namorado um negro e muito sofreu por tê-lo feito.
Foi no ano de 1993, que já professor do Ensino Médio e Fundamental começei a perceber que o preconceito de raça era algo social, cultural, mais forte que as pessoas. Comecei a perceber que algumas pessoas eram racistas sem querer sê-lo; outras, negavam ser quando na verdade o eram muito. Aprendi a conviver com o racismo e a ter orgulho da minha origem, e mergulhei em uma busca espiritual a qual só encontrei razoável satisfação no ano de 2004, quando conclui o curso de Mestrado em Reiki, quando finalmente aprendi e convenci-me de que somos todos iguais. Desde então abandonei a militância do movimento anti-racista, por que entendi que todo movimento de afirmação separa as pessoas e que meu dever é ajudar a todos a perceber o quanto são iguais e, por que devem viver em harmonia. Tornei-me um humanista radical.
Observo todos os dias o racismo e o preconceito de todas as formas. Negros, índios, gordos, magros, baixinhos, mulheres, e tantas outras formas. O preconceito é a negação do ser humano, a negação de nós mesmos, pois quando negamos ao outro o direito de ser feliz é a nós que estamos negando o direito a vida plena, pois estamos tão interligados a todos que é impossível não sentir a dor, cedo ou tarde, causada a alguém pela negação de seu aspecto e essência humana.
O preconceito na Literatura – O caso de O Mulato.
Também encontrei nos livros, muito cedo, o preconceito. Não entendia por que Gonçalves Dias exaltava tantos os índios e nada dizia dos negros. Apenas com Castro Alves e os abolicionistas senti-me contemplado com a bravura dos meus anscestrais. Já não precisava sentir-me um pouco índio, para ser contemplado nos versos: Não chores, meu filho/ não chores. A vida é combate que os fracos abate, que aos fortes e duros só pode exaltar. O poema “Navio Negreiro”, e “Vozes da África” falaram alto em meu coração. Decorei e declamei infinita vezes até que ressoou em minha alma.
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
O meu coração tremeluzia cada vez que meus lábios pronunciava tal poema. Sentia a dor do poeta, repetia, com lágrimas e dor honesta a história no poema cantado. E como doía-me a dor das mulheres negras:
São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.
Eu encontrei o clamor a Deus, eu que me perguntava por que Deus permitira tal desgraça a uma tão grandiosa nação. E encontrei, encontrei em “Vozes d” a Afríca” a mesma súplica, a mesma dor, a mesma desgraça, o mesmo suplicio vão. E a dor que rasgava meu peito juntava a história vivida. As brincadeiras que se ouvia, as esperanças eram depositadas no surgimento de heróis como Zumbi dos Palmares, Martim Luther King e Nelson Mandela. A literatura poesias aumentava minha dor, pois não contava vitórias, apenas as dores do mundo, as dores do sofrimento e da escravidão.
Foi assim que aos 14 anos recomendaram-em Aluísio de Azevedo. Comecei a ler o Mulato de forma frenética. Contava a história do Crioulo ou Mulato Raimundo. Dizia seu Joel que era exemplo de um vencendo na literatura. Qual foi minha decepção quando comecei a sentir as dores de Raimundo, o crioulo mulato. Raimundo, mulato, que sai de sua cidade cedo, estuda, fica letrado, volta e se apaixona por Ana Rosa e quem era Ana Rosa? Mulher volúvel leitora de Madame Bovarry, Primo Basílio, etc; e eu, que desgraçadamente já tinha lido tais livros logo que deduzi que tudo terminaria em desgraça. Madame Bovarry, e Luisa, da obra Primo Basílio, eu as tinha como verdadeiras prostitutas da alta sociedade, mulheres sem nenhuma moral ou pudor, que traem seu amores e amantes pelos prazeres da carne e apenas pelos prazeres da carne.
Raimundo, coitado, estava loucamente apaixonado por uma mulher dissoluta, hipócrita, capaz dos piores desatinos, do assassinato ao adultério. Depois de diversas leituras nunca consegui decifrar se Raimundo era um apaixonado ingenuo ou inocente ou se era mais um vencido pelo desejo desenfreado da carne. Talvez o autor, naturalista que é quis ilustra o aspecto sensual da raça negra, tentando mostrar ser uma fraqueza do homem negro o amor pelas mulheres. Talvez, é difícil crer em tal hipótese. Quem se dá ao trabalho de ler a biografia de Aluísio tem a impressão de que ele contava a própria história. Sua mãe traia abertamente o pai, e ele, teve diversos problemas ao longo da vida, dividindo sua história entre o Rio de Janeiro e São Luís do Maranhão.
Afinal, o mais dolorido na obra é quando no desfecho fica claro que o principal impedimento para que o amor acontecesse foi mesmo o fato de Raimundo ser um mulato, embora de olhos azuis, mas era um mulato. A obra, por naturalista que é, acaba mostrando, e dando a entender que a perversidade das classes baixas são determinadas pelas raças, pelo meio nos quais as pessoas vivem, quase que repetindo a sociologia de Auguste Comte e Hipolyte de Tayne. O preconceito, a perversidade, a hipocrisia, o adultério, aparecem de forma cabal em toda obra, que pode nos levar a entender não apenas o que a época e o autor tentou-nos mostrar, mas que o preconceito está na raiz de muitos males da nossa sociedade.
Sobre a moral e o preconceito em “O mulato”
Quando nos detemos no estudo do comportamento moral do ser humano não tem como deixar de perceber as fraquezas, e, estas aparecem até com mais forças do que as boas qualidades e virtudes. Na obra “ O Mulato” uma descrição naturalista da sociedade burguesa da época fica claro os vícios da burguesia e os desatinos do proletariado. A burguesia apresenta-se como uma classe cheia de Hipocrisia, ganância, inveja, ambição, dados a viver das aparências; e o proletariado, uma classe dada a luxúria, e, submetidos a luta pela sobrevivência entregam-se aos piores vícios.
Raimundo é um personagem em busca de si mesmo. Não consegue se colocar nesta sociedade. Letrado, já não consegue viver no meio do proletariado; mulato, não encontra espaço no meio da burguesia. Perdido entre um e outro espaço social, revela toda a sua fraqueza de espírito, cedendo, deixando-se enganar por uma mulher dissoluta, hipócrita e cruel. Não é difícil perceber que a estima de Raimundo é baixa. Não é difícil perceber as marcas que o preconceito e o racismo imprime em seu espírito. Raimundo é um modelo de uma época onde a luta do negro por emancipação era terrivelmente cruel.
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