Da consciência negra à consciência humana : A luta contra a servidão moderna.



Nelson Soares dos Santos[1]

Toda minha vida, pesquisei, estudei e refleti sobre a situação do negro no Brasil, mas foi na graduação quando pela primeira vez, fiz um trabalho com um mínimo de cientificidade sobre o processo de abolição da escravatura no Brasil. Naquela época estava interessado em entender as diferenças de motivações que possuíam de um lado, os abolicionistas livres como Joaquim Nabuco, Castro Alves, entre outros; e de outro lado, os negros aquilombados com destaque para Zumbi dos Palmares. Eu conclui que Zumbi tinha uma motivação existencial enquanto os abolicionistas, em sua maioria, por vezes até eram libertários idealistas, mas parte de um sistema que em sua essência queria perdurar e fazer aumentar a oferta de mão-de-obra assalariada para o sistema capitalista.
Eu sempre dizia que os idealistas nunca entenderam as motivações dos negros aquilombados, nunca foram capazes de sentir a dor sentida pelos escravos, e nem tão pouco compreender a crueldade que significava a escravidão. Mesmo Castro Alves com seus versos que nos faz deixar as lágrimas rolar diante da dor que ele foi capaz de expressar não chegou a profundidade da dor sentida pelos escravos. Como nas guerras, aqueles que compreenderem a profundidade da dor não viveram para contar e expressar o sofrimento pelo qual passaram. A servidão é uma dor que além do corpo escraviza o espírito e a alma e deixa marcas que o tempo e as vezes, sequer a morte é capaz de apagar.
Crueldade maior, é perceber mais de cem anos depois que a abolição da escravatura foi uma grande ilusão para a grande maioria dos negros no Brasil. Sem lugar para viver, sem trabalho (substituídos que foram por imigrantes), sem comida, os negros foram jogados na rua, na sarjeta, e jamais foram tratados como cidadãos. Ficaram a margem da lei e ainda hoje, pouco pode ter de apoio do estado para a construção da verdadeira cidadania. O Sistema Capitalista agiu com toda a sua crueldade sobre os negros, agora livres, livres para não encontrarem ninguém que os quisesse escravizar em troco de míseros trocados que pudessem pelo menos saciar a fome e a dor de estar no mundo.

A consciência Negra.

Foi o sofrimento e a dor que levou os negros no Brasil a luta. O surgimento do movimento negro no Brasil, desde os mais radicais aos mais pacíficos não foi uma dádiva dos brancos ou do sistema de governo, de estado, ou de mercado. Foi uma luta árdua, dolorida, sofrida com muito sangue derramado desde os dos negros aquilombados, pelos revoltosos da Revolta da Chibata, e tantos outros anônimos que levantando a cabeça colocaram suas vidas em risco e ensinaram os filhos a resistir, a luta, a não aceitar nada diferente da igualdade e do direito de ser cidadão.
Foi assim que surgiu o dia da consciência negra, o direito às cotas, a luta pela educação de qualidade. Tudo que hoje temos é fruto de uma luta de milhares de mãos, uma luta pela qual se derramou literalmente sangue, suor e lágrimas. A consciência da negritude brasileira se fez sim, com a alegria do samba, mas também com o sofrimento. O acúmulo das lutas foi se somando até que o negro construiu um inconsciente coletivo no qual se descobriu como etinia, como povo também e essencialmente brasileiro mas que tinha uma origem própria, uma descendência da qual aprendeu a se orgulhar.

A Servidão Moderna.

A luta do negro, no entanto, mal começou. Quando se descobriu como participante do sistema, com alguns direitos, muitos deveres e uma tendência constante a ser marginalizado é que se percebe que a luta pela libertação é maior do que parecia ao primeiro momento. A escravidão do sistema é sutil. O trabalho dito livre, o salário reivindicado, o direito de consumir é também os símbolos de uma nova escravidão. E esta nova escravidão é mais cruel por que vem travestida do direito da liberdade de escolha. É o próprio individuo que luta para ser escravizado e disputa com o seu semelhante o espaço e o direito de ser tornar um escravo. E não foi esta a liberdade pela qual os ancestrais lutaram, não foi esta a busca de Zumbi dos Palamres, descobre o negro do século XXI, atônito e estupefato.
A luta então recomeça. Agora o negro sabe que a sua liberdade depende da liberdade do seu semelhante, que a consciência negra tem de se transforma em consciência humana, que ao final somos todos iguais, somos todos seres humanos em busca do desenvolvimento humano, físico, mental e espiritual. A luta é também por justiça social, democracia e uma nova forma de liberdade fundada na cooperação e não na competição. A nova cidadania requer uma sutileza na forma de lutar e virtudes que façam da sociedade um lugar de paz. É o tempo do guerreiro pacífico.
A luta contra a servidão moderna é contra o ato de se perder no perverso direito de ser livre para consumir. A mercadoria que se possui é a inimiga que escraviza que distancia os indivíduos e os faz escravos de suas próprias vontades. A luta é pelo domínio de si. A condição de possuir sem ser possuído e a educação do desejo de receber para compartilhar. E assim, o maior desafio é perceber o outro. Em tempos de uma vida em rede a percepção da existência do outro se tornou um desafio a ser vencido  todo momento. Libertar-se é poder ter a si mesmo para ter o direito de viver com o outro. Eis o fundamento da luta por uma consciência humana nos nossos dias.




[1] Nelson Soares dos Santos é Licenciado em Pedagogia, Mestre em Educação Brasileira e Dirigente Estadual do PPS em Goiás.

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