Por que o PLC 122 não deve ser aprovado.


A fobia dos parlamentares ao projeto da homofobia
“Será que os que pregam a aprovação do projeto contra a homofobia sem alterações já se dispuseram a fazer uma leitura crítica do texto? Sou capaz de apostar que não"
Wagner Fraga Friaça*
A decisão do STF sobre a legalidade da união estável entre casais homosexuais, reconhecendo seus direitos e deveres, a par de ser aplaudida como uma importante vitória contra a discriminação, expõe problemas da nossa sociedade democrática que merecem reflexão.
O primeiro deles é a omissão – ou mesmo falta de coragem - dos deputados federais e senadores para estabelecerem uma pauta de assuntos que sejam efetivamente do interesse da sociedade, com o objetivo de solucionar problemas práticos do dia-a-dia que esbarram em uma legislação ultrapassada pelos novos tempos - envelhecida mesmo.
Basta um tema em discussão ser considerado “desconfortável” ou representar possibilidade de perda de votos neste ou naquele segmento da sociedade para que o assunto leve décadas para ser enfrentado ou mesmo nunca entre em votação, apenas tramitando de uma comissão para outra, em infindáveis audiências públicas, num processo protelatório inacreditável. Há um descompasso evidente entre o parlamento e a vontade popular.
O vazio deixado por esse importante pilar da democracia – o Congresso Nacional – leva-nos ao segundo problema, que tem gerado duas preocupantes distorções: o excesso da edição de medidas provisórias por parte do Poder Executivo, ao estilo “arca de Noé”, embarcando nelas diferentes tipos de assunto, e, agora, em tempos mais recentes, o afã do Poder Judiciário em legislar. Sob os holofotes da TV Justiça, os magistrados experimentaram e gostaram do “ibope” que o poder de legislar sobre causas populares oferece, e passaram a usurpar, de maneira discreta, as prerrogativas das quais senadores e deputados estão abrindo mão.
O caso da decisão do STF sobre casais homosexuais evidenciou ainda um problema com outro personagem emblemático da nossa democracia: a imprensa. A partir daquela decisão, ganhou força o debate sobre a necessidade de uma legislação mais dura contra a homofobia. E, como um mantra, a imprensa prega a aprovação quase incondicional do propalado “PLC 122”.
Se há críticas de que, por vezes, parlamentares votam sem conhecimento a matéria, neste caso também a imprensa defende um texto legal que desconhece. Será que os que pregam a aprovação do PLC 122 sem alterações (pois qualquer mudança implicará retorno à Câmara para apreciação das emendas do Senado) já se dispuseram a fazer uma leitura crítica sobre o texto em discussão? Sou capaz de apostar que não. Trata-se do projeto de lei da Câmara, nº 5003 – pasmem... – do ano de 2001, de autoria da deputada Iara Bernardi (PT-SP). Aprovado na Câmara em 2006, passou a tramitar no Senado sob o número PLC 122/2006. Completará 10 anos em agosto. Os senadores não tiveram ainda a coragem de dizer o “não” que o projeto merece, e tampouco dizem o “sim” que revelaria a verdade de que muitas matérias são votadas sem o conhecimento do texto. Explico:
O que se está votando no PLC 122 são alterações na Lei nº 7.716, de 1989, para incluir, nela, a criminalização da homofobia. Essa lei, atualmente, define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Originalmente (na Câmara), o PLC 122 (então PL 5003) não tinha por objetivo incorporar o tema da homofobia na Lei nº 7.716. O PL 5003 pretendia a edição de uma lei específica para o enfrentamento da homofobia. Ocorre que, no curso da sua tramitação, outros quatro projetos para combate à homofobia foram apensados ao PL 5003, e todos traziam a solução pela via da incorporação do tema na Lei nº 7.716. O relator da matéria, deputado Luciano ZICA (PT-SP), optou por um substitutivo ao PL 5003, aprovando-o com a absorção das contribuições dos demais projetos. E o substitutivo foi ao Senado, portanto, na forma do conhecido PLC 122.
Ora, mas por qual razão o PLC 122 mereceria o “não” a que me referi? Para se chegar a essa conclusão, é oportuno conhecer um pouco a história da Lei nº 7.716. A precursora dela foi a “Lei Afonso Arinos” (Lei nº 1.390/1951), que incluía entre as contravenções penais a prática e os atos resultantes de preconceito de raça e de cor. Tratava-se de uma lei casuística, que selecionou apenas um pequeno número de situações que seriam consideradas “racismo”.
Somente em 1985 a Lei Afonso Arinos foi atualizada pela Lei nº 7.437, mas, novamente por razões casuísticas, a atualização limitou-se a acrescentar a repressão a outras formas de discriminação: em razão do sexo ou do estado civil.
Em 1989 veio a Lei nº 7.716, objeto aqui da nossa discussão, que revogando as antecessoras tentou ampliar as modalidades delituosas no campo da discriminação, e passou a retratar o racismo penalmente relevante a partir do local da ocorrência desse delito (na administração pública, estabelecimentos comerciais, hotéis, escolas, restaurantes, bares, confeitarias, elevadores, etc).
Minha avaliação é que a Lei 7.716 já tem problemas demais, no que se refere à técnica legislativa, para vir a servir, casuisticamente, de suporte para recepcionar o combate à homofobia. O ideal seria uma nova lei, uma lei especial, tratando do enfrentamento a todos os tipos de discriminação –  entre os quais a homofobia -, aproveitando para corrigir os defeitos da Lei 7.716, revogando-a. Isso porque na elaboração da Lei 7.716, em razão do casuísmo de então, não se teve o cuidado de atentar para as aberrações que se estava aprovando. Senão, vejamos:
O seu art. 4º, por exemplo, estabelece pena de reclusão de 2 a 5 anos para quem “negar ou obstar emprego em empresa privada”. Ora, é óbvio que o que se pretendeu dizer é que o crime estaria configurado se a negativa estiver fundada por razões de raça ou cor do candidato ao emprego, mas isso não foi dito no tipo penal. Desde então cabe ao juiz fazer a correta interpretação para que o dispositivo possa ser cumprido.
Da mesma forma há defeito no art. 5º, que estabelece pena de reclusão de 1 a 3 anos para quem “recusar ou impedir o acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador”. É igualmente óbvio que o crime, aí, estaria configurado se a recusa do acesso se der por razões de raça ou cor do comprador, mas isso não está descrito no tipo penal. Não é conveniente que um comprador acompanhado de um cão pitbull frequente uma padaria. Seu proprietário teria o acesso ao recinto recusado por justa razão, mas nem por isso se poderia invocar o enquadramento naquele art. 5º, embora a má redação possa dar margem a essa interpretação equivocada.
Iguais defeitos de técnica legislativa estão espraiados por toda a Lei 7.716. Pior: ao se utilizar do artifício de alterá-la, casuisticamente, para tipificar a homofobia, o legislador está seguindo o mesmo padrão de redação, incorrendo nos mesmos erros de técnica legislativa e perdendo a oportunidade de criar uma lei especial que enfrente os diversos tipos de discriminação. Comprova isso o fato de o PLC 122 atualizar o caput do art. 8º da Lei 7.716 apenas para retirar a “confeitaria” da relação de estabelecimentos comerciais ali descritos, onde se prevê pena de reclusão de 1 a 3 anos para quem “impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, [confeitarias], ou locais semelhantes abertos ao público”. O tipo penal corretamente redigido deveria apontar que o crime se configuraria se o ato de impedir ou de recusar se der por razões de discriminação racial ou de qualquer outra modalidade de discriminação que a lei venha a definir.
O mantra da imprensa, sob o apelido de “opinião pública”, para que o PLC 122 seja aprovado, pode forçar os senadores a aprovarem um projeto de lei defeituoso e, após 10 anos de luta pela causa, levar os defensores do tema a “morrerem na praia” em razão de a presidenta da República, constrangida, ser obrigada a vetar integralmente o projeto – tamanhos serão seus defeitos de técnica legislativa e, portanto, a inconveniência da sua sanção.
Mas... existe solução para atender ao casuísmo da pressão da “opinião pública”? [leia-se, imprensa].
Sim, existe solução. Tramita na Câmara dos Deputados o PL 6.418/2005. Trata-se de um projeto de lei originado no Senado. É um substitutivo do então senador Rodolpho Tourinho (DEM-BA) ao Projeto de Lei do Senado nº 309, de 2004 – este de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS). O substitutivo Rodolpho Tourinho redefine os crimes resultantes de discriminação e preconceitos de raça, cor, etnia, religião ou de origem. Ao final, ele revoga a Lei nº 7.716/1989. Ou seja, além de atualizar os temas para o enfrentamento da discriminação racial, o PL 6.418 corrige a redação de todos os tipos penais, ferindo de morte a Lei 7.716.
Importa para a presente discussão que a Câmara aprimorou o texto do PL 6.418 e incorporou emendas que inseriram no projeto o combate à homofobia, sem esbarrar nos dogmas religiosos.
O assunto está pronto para ser resolvido de forma inteligente e sem casuísmos. Basta vontade política; basta os parlamentares terem a coragem de enfrentar o tema – para o “sim” ou para o “não”; basta o Congresso Nacional retomar as suas prerrogativas que estão, aos poucos, e de forma preocupante, sendo transferidas para o Poder Executivo e para o Poder Judiciário.
* Técnico Legislativo do Senado Federal, Bacharel em Comunicação Social e pós-graduado em Marketing pelo CEUB

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