Conhecimento: O senso comum e a consciência do novo senso comum..

Nelson Soares dos Santos

Quando me ponho pensar sobre a questão do conhecimento na atualidade, logo me vem à mente o quanto o conhecimento é para poucos. Não é coisa de marxista, a verdade é que o acesso ao conhecimento da realidade ou aos instrumentos de conhecimento da realidade é tão ou mais elitizado que o capital financeiro. Não é por acaso que já se fala em capital intelectual como instrumento do capital financeiro e se estuda as melhores formas de exploração do mesmo visando o lucro das empresas. Mas, afinal, por que o acesso à ciência é tão mal distribuído mesmo entre as classes com alto poder aquisitivo?
A resposta para esta pergunta guarda em si algumas armadilhas; a primeira delas, a aparência de já poder ter havido alguma época na qual o acesso ao conhecimento válido da realidade fosse patrimônio de um grande número de pessoas. Não parece ter sido assim. Um breve olhar pelas tradições do pensamento ocidental e vemos que o conhecimento das coisas foi, parece, tributo de alguns poucos privilegiados.
 Na tradição Judaica, segundo se lê na própria Torá, existia uma limitação ao acesso ao conhecimento, uma vez que apenas os filhos da casa de Levi tinham acesso aos mistérios Sagrados do Templo, e entre os filhos da Casa de Judá eram escolhidos os governantes. Entre os gregos, conhecidos pela riqueza dos seus mitos e por serem os primeiros a instituir o logos como forma de explicação da realidade, apenas os cidadãos tinham acesso a formação necessária que dava condições ao pensamento criador. Ficavam de fora, escravos, mulheres, e, estrangeiros.

É no cristianismo, no entanto, sobretudo sobre sua forma medieval que parece ter havido a maior restrição ao acesso aos instrumentos de conhecimento da realidade, não apenas negando a possibilidade como fazendo uma verdadeira tentativa de impedir que as pessoas ultrapassassem os referidos limites por elas mesmas. As perseguições, as fogueiras e todas as artimanhas do cristianismo romanizado não foram, no entanto, capazes de frear o desenvolvimento do pensamento racional.
Nas demais tradições culturais, seja na Índia, China, Japão, Pérsia, Babilônia, Egito, e, nos países nórdicos o conhecimento dos mistérios também esteve sempre ligado a um grupo restrito de pessoas, ligadas a um mestre que repassava o saber apenas aqueles que acreditavam merecedores.

A revolução do Iluminismo e o Homem Esclarecido.

A  ciência moderna, a grande responsável por produzir o acesso ao conhecimento para todos aqueles que de fato quisessem fazer de suas vidas uma vida de busca ao saber, traz em si, também armadilhas que precisam ser esclarecidas. Acreditar com Kant que aconteça o esclarecimento é preciso que o  homem saia de sua minoridade, e que o  homem é  o único responsável por estar na minoridade não parece mais ser uma explicação plausível. Naquele tempo, as palavras ideologia, alienação, mercadoria e financeirização não possuíam o lugar central que possui nossos dias quando o assunto é expansão da consciência humana.
Esta  mesma ciência moderna com toda técnica a ela inerente revolucionou o modo de divulgar o conhecimento, de um lado institucionalizando no Estado Moderno o papel das escolas e Universidades como lugar de produção de saberes, de outro lado, fez se acompanhar de mecanismos que causa uma grande confusão na mente humana e faz muitos crer possuir o conhecimento que de fato não possui.
O processo de alienação torna-se a assim uma armadilha da qual não é fácil escapar. A dialética estabelecida entre o processo de alienação e a ideologia produz um circulo estranho e interminável, aliado ao processo de fragmentação desta mesma ciência leva a um circulo quase interminável de idas e voltas sobre si mesmo, aonde o sujeito vai se tornando incapaz de conhecer a própria realidade. Isso ainda fica mais complexo quando se analisa a distância que existe entre o mundo vivido e o que Bachelard chama de cidade científica com suas linguagens, terminologias, completamente estranhas a realidade do homem que vive envolvido na técnica ou na fenomenotécnica.
O mundo da ciência ou que depende da ciência para existir, ou seja, o mundo produzido pela ciência está distante do mundo vivido do homem comum, não apenas pela exigência colocada pelo capital para se reduplicar constantemente. Na verdade, o homem comum desconhece o mundo produzido pela ciência por que o aparato produzido por ela retirou a necessidade de se conhecer o real. Qual necessidade tem uma pessoa de conhecer o funcionamento de uma máquina de lavar? O que muda exatamente na vida de uma pessoa saber explicar as diferenças entre as leis de Newton? E tudo isso torna-se menos atraente ainda se a pessoa da qual falamos vive uma vida confortável e precisa de pouco para viver bem. E mesmo aqueles que vêem na busca do conhecimento uma forma de “melhorar a vida”, poucos passam do fenômeno conhecido como profissionalização ou especialização, no qual, o individuo acaba por se restringir ao conhecimento do seu fazer prático, ignorando a possibilidade de se conhecer a realidade de forma radical, rigorosa e de conjunto.

Um novo tipo de senso comum.

Este é  o motivo que leva muitos bons profissionais, executivos, e até mesmo bons profissionais das chamadas ciências humanas se orgulhar de nada saber da filosofia, e questionar, para que serve a filosofia. Pedagogos, Sociólogos, Psicólogos; a  maioria, os quais restringiram a formação a uma graduação e uma especialização falam de peito cheio da filosofia como persona non grata do mundo do saber e do sucesso profissional. Em contrapartida, os graduados das mais diversas áreas são a clientela que mais investe em cursos de curta duração e  no Coaching, sendo que este último já existe como solução para quase todos os males.
Pouco tenho ouvido sobre este novo tipo de senso comum. É uma forma de ignorância não daqueles que não sabem ler, ou escrever, mas, daqueles que pretendem conhecer, ou saber conhecer, e o que é pior, é que este mal está acometendo muitos que se propõe a ensinar e estão nas Universidades ensinando. Mesmo no campo da filosofia, a situação já não é mais tranqüilizadora. Poderia ser entendido como fez a escola de Frankfurt como sendo um processo de morte da razão pela sua instrumentalização, mas não creio ser só isso. Talvez Habermas tenha se aproximado bem mais da realidade ao discutir o processo  de dissociação e fragmentação do mundo da vida. Então, onde a filosofia tem falhado? Talvez não tenha sido falha, mas apenas uma falta de percepção do fenômeno. Preocupada com o esforço de fazer aumentar as possibilidades de conhecimento ou de compreender as novas de conhecimento do real a filosofia tem se mantido no topo da árvore. É preciso descer da árvore, talvez, nem tanto para compreender as raízes mas para retirar as folhas secas que se acumulam no chão e impede novas plantas de se germinarem. Em alguns casos, não se pode mais dizer que são apenas folhas secas, transformaram-se em rochas e o terreno se tornou infértil.
O novo senso comum de que falo é o senso comum dos escolarizados. Em alguns casos, sabem ler, escrever e até são bons escritores com livros publicados e milhares de exemplares vendidos, mas, pessoas que não possuem uma visão radical da realidade. Pessoas que estão tão voltadas para si que não são capazes de perceber as interconexões do todo ou da totalidade.
Uma coisa que se observa é que as formas de conhecimento de uma dada época estão profundamente relacionadas com ao modo de como as pessoas vivem, o padrão moral, a visão de mundo, as crenças e valores. Foi assim na época dos mitos, depois no tempo em que predominou a filosofia de cunha totalmente racional; em seguida, mesmo com a filosofia como serva da teologia na filosofia medieval o exercício do ato de conhecer não estava muito distante do modo de viver das pessoas em sua grande totalidade. Tal dissociação ganha força justamente com o surgimento da ciência moderna e o novo papel que a filosofia passa a ter no novo cenário.

Na verdade, o que parece é que a filosofia não reencontrou mais o seu espaço e papel como campo e ou tipo de conhecimento. A filosofia parece ter ficado presa no medo de, de um lado escorregar para o misticismo ou metafísica; e, de outro, cair no experimentalismo da ciência. Filosofia passou a se tornar sinônimo de estudo de alguma corrente filosófica do passado. Assim, os novos estudiosos da filosofia se tornaram verdadeiros especialistas em metanarrativas, como se isso fosse possível no campo da filosofia. Assim, temos uma maioria de estudantes, professores, mestres e até doutores, que sabem tudo de Fenomenologia mas quando questionados sobre o pragmatismo se esquivam de se pronunciar; outros sabem tudo de marxismo, mas são incapazes de orientar uma tese no campo da epistemologia, fenomenologia, existencialismo, ou outra qualquer. São pessoas que ficam presas a um conjunto de categorias que acreditam tudo explicar, e quando não conseguem se refugiam na questão da especialização das áreas do saber.

As saídas tentadas e imaginadas.

Não se pode dizer que não existam pesquisadores dos mais diversos campos e tipos de conhecimento tentando sair da vala comum e encontrar caminhos e métodos que expliquem a realidade de forma mais rigorosa. E, nesta tentativa, o  conhecimento do mundo ocidental que já sofrera as influências do Judaísmo, do Mito, e do Cristianismo tem sofrido nos últimos anos as influências vindas do mundo oriental com um peso nunca visto e em todas as áreas.
Justamente, e também como influência do pensamento oriental, a fragmentação das ciências, no que diz respeito ao conhecimento científico começa a ser negada e tem se tentado o que convencionou chamar de Multidisciplinaridade, Interdisciplinaridade, ou Transdisciplinaridade na tentativa de aproximar as ciências em busca de uma visão mais totalizadora. O problema é que em movimento estranho cada ciência passou a cunhar novos campos como se possível houver aquela ciência para tudo e todos. Um exemplo: na sociologia passamos a ter sociologia rural, do lazer, do esporte; de forma que não duvido que logo teremos uma sociologia do indivíduo por mais absurdo que  pareça ser.
Em busca de uma pretensa unidade o conhecimento parece se fragmentar cada vez mais. A razão parece cada vez mais instrumentalizada e a irracionalidade parece pairar absoluta, dona de si, senhora de todos reinando sobre um senso comum que possui dificuldade de explicar os menores eventos da vida cotidiana. Pior do que isso é tentar fugir deste senso comum que se tornou quase um bem universal. Não é a toa que já temos professores nas Universidades, com doutorado, e muitos no campo das ciências humanas que se orgulham de não conhecer quase nada de filosofia.
O novo senso comum vai se tornando um consenso que se repete pela duvidosa formação das novas gerações, a qualidade do ensino superior de graduação e a própria forma como a sociedade passa a ver a Universidade. Há algumas décadas ira para uma universidade significava que a pessoa iria se tornar alguém importante, hoje, significa necessariamente que a pessoa vai ter uma profissão. O novo senso comum é parte de uma tão bem arquitetada ideologia que até aqueles empedernidos marxistas que dizem lutar contra a dominação tornam-se peças de reposição no grande xadrez no qual se relaciona poder e conhecimento.



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