Lições do Culto do Cerrado.



Eram cinco horas da manha. Os monitores entravam de quarto em quarto acordando os corajosos que decidiam acordar ainda mais cedo, no único dia no qual se podia dormir um pouco mais na vida que se vivia dentre os muros invisíveis do Instituto Adventista Brasil Central. Tudo na verdade começava no dia anterior. Os amantes do culto do cerrado passavam de quarto em quarto convidando a cultuar a Deus logo cedo e no meio da natureza, antes mesmo do sol nascer. Era o que se chamava culto do Cerrado.
O culto do cerrado tinha naquele momento vários significados. Um deles, era o fato de se constituir um momento único no qual se podia estar mais perto das meninas, e hoje, não tenho dúvida, para nós, estar mais perto das meninas, sentindo aquele perfume matinal de mulher era mesmo como estar bem mais perto de Deus. Não tenho lembranças de colegas, que por mais religiosos que fossem, conseguisse separar estas duas coisas no culto do cerrado: estar perto de Deus e estar perto daquela menina, àquela doçura de sorriso, meiguice de olhar, que tornava tudo mais belo naquele lugar longíquo.
Na primavera saíamos do prédio ainda quase no escuro. O sol, ainda longe de nascer, só nos permitia que víssemos seus primeiros raios quando já estávamos na oração final, no caminho de volta, que quando ao lado da amada, doce, meiga companhia feminina não tinha nenhuma pressa para chegar ao refeitório. Tive poucas paixões no internato, e, minha maior paixão, que eu consigo me lembrar foi ao culto do cerrado duas ou três vezes; e, rodeada que era por quatro ou cinco amigas, nunca deixou que eu me aproximasse. Vivia eu o amor platônico que do qual se acomete todos os jovens na tenra idade da vida e que são levados a acreditar nas histórias de amores dos livros.
O culto do cerrado nos colocava perto de Deus, da natureza, e daquela doce donzela em quem colocávamos muitos de nossos sonhos e esperanças de um futuro melhor. A família ou o desejo de ter uma, creio que era o mais forte sonho de todos os jovens que habitavam aquele lugar. Todos sonhavam com uma doce mulher, uma companheira que pudéssemos amar com todas as forças do nosso ser, e que amávamos sem nenhum medo de sofrer. Impossível esquecer a cena de dois colegas de quarto doentes e com febre por que receberam um não daquela que acreditava ser a escolhida por todos os dias do futuro. O culto do cerrado nos colocava perto do amor. Um amor que transcendia a natureza e nos fazia sonhar com um paraíso na terra.
Eu lembro de um culto do cerrado no qual se pregou sobre o amor. O pregador era o Professor Gilberto, preceptor e uma pessoa de grande dignidade. Naquele dia, entre outras passagens da Biblia que foram lidas, foi que me impressionei de forma indelével com as palavras de I coríntios 13. Por sinal, foi um dos poucos cultos do cerrado no qual estava minha amada. Enquanto ouvia procurava os olhos dela na esperança de ser visto, e para minha tristeza, ela se escondia se esgueirava como se dissesse: fique longe de mim. No final, o pastor contou uma história de um rapaz que estudou em um dos internatos Adventistas e que segundo ele, deu uma das grandes demonstrações de amor que conhecia. Era a história mais ou menos assim:
O rapaz chegou ao colégio para estudar como aluno bolsista Industriário e no inicio das aulas chegou a sua amada. Ele apaixonou-se no primeiro olhar. Ela, sequer percebeu a presença dele. Dias se passavam e ele cada vez mais apaixonado, ela, cada vez mais indiferente. Todos os seus bilhetes[1] de feliz sábado, feliz semana, eram ignorados. As sobremesas[2] que enviava de presentes, as rosas, eram todas ignoradas. O jovem, porém, não desistia. Um dia resolveu fazer algo ousado e fez uma declaração de amor em público. A jovem, envergonhada humilhou-o severamente, ao ponto de todos se compadecerem do mancebo.
Os meses se passaram  as férias chegaram. O jovem, consciente de que tinha sido rejeitado por ser pobre e bolsista resolveu colportar[3]. Trabalhou duramente o mês inteiro na esperança de rever sua amada, pois sabia que se não conseguisse ter sucesso nas vendas sequer poderia voltar ao colégio. Ele conseguiu, voltou alegre, sorridente, certo de que agora possuía as condições necessárias para alcançar seu objetivo: ser respeitado e amado por aquela que ele amava.
Qual  foi a surpresa e a dor ao chegar à tesouraria e ali encontrar o pai da sua amada acertando as contas para levar consigo a filha, e, esta, chorava por ter aprendido amar o internato e dali já não mais queria sair. ( eu acho que esta parte é inteiramente ficção. Risos). Desnorteado, com seu coração em chamas, buscou informação da razão por que ela estava deixando o colégio contra a própria vontade.  Já em prantos, foi recebido pelo tesoureiro que lhe explicou o acontecido.  O pai da moça havia falido, e não queria deixar sua filha como bolsista, mesmo por que não havia vagas para industriários.
O jovem comovido pediu ao tesoureiro que o deixasse pagar as mensalidades da amada, e, que ele, ficaria sem estudar aquele semestre, colportaria o semestre inteiro e continuaria seus estudos no ano seguinte. Pediu ao tesoureiro ainda duas coisas: a primeira, que ele queria estar presente quando ele dissesse a ela que a mesma tinha ganho uma bolsa; e segundo, que jamais revelasse o nome do doador da bolsa. No momento do anúncio viu sua amada chorar de alegria pelo que considerava uma providência divina; e, lá se foi ele, para as ruas da cidade grande vender livros, de sol a sol, na esperança de que no semestre seguinte estaria novamente bem perto de sua amada.
Dois anos se passaram, e um dia, finalmente, o jovem,  agora aluno regular[4] resolve novamente fazer a declaração do seu amor. Novamente, humilhado, abandonado, retirou-se para o seu quarto, quieto, sem dizer uma só palavra a amada que não fosse uma tentativa de ter seu amor reconhecido. Sentindo-se fracassado perdeu a vontade de estudar, estava prestes a ir embora do colégio quando o Tesoureiro do colégio resolveu intervir. Chamou-a  e contou quem era o doador da bolsa de estudos que permitia a ela continuar desfrutando da vida no Colégio. Alguns dias depois, os dois se entenderam. Ela com lágrimas nos olhos  dizia que não tinha como não amá-lo uma vez que ele a amava tanto, e sem exigir nada em troca que não fosse também um amor verdadeiro.
Não me lembro de nenhum presente que não tinha um brilho especial nos olhos, ou que os mesmos não estivessem marejados de lágrimas quando a história se concluía. O culto do cerrado nos ensinava sempre lições de amor, de companheirismo uma vez que era o único lugar que se podia ir por desejo próprio. Ali, era possível aprender da vida que se vive pela vontade.
Ainda lembro-me daquela árvore com tão poucos galhos e folhas que mal agasalhava a todos quando o número excedia a uma centena de jovens, uma mesmo metade de uma centena. Era no, no entanto, ali, que livres podíamos nos sentir perto de Deus e de Todas as  belezas que jamais deixei de admirar. Foi lá no culto do cerrado que decidi que viveria o meu amor, que me deixaria que aquele amor crescesse no meu peito a despeito da dor que poderia me fazer sentir. Se houve  uma lição que pude aprender no culto do cerrado, esta lição  foi a que vale a pena amar, por que o amor é algo inexplicável para quem vive e rejeitado para quem nunca viveu.













[1] No internato tinha-se o costume de entregar bilhetes de felicitações de feliz sábado e feliz semana aos mais queridos.
[2] Os enamorados, costumavam enviar por meio de um amigo ou pelo monitor sua sobremesa, ou as frutas, para  aquele a quem se afeiçoava como demonstração de amor e carinho.
[3] Colportor era o nome que se dava aos jovens que se ausentavam do colégio durante as férias para vender livros com o objetivo de pagar o colégio e se sustentarem.
[4] Aluno regular era o nome dado aqueles alunos os quais os pais pagavam a mensalidade completa e não precisava realizar nenhum trabalho que não fosse de cunho educativo.

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