COMENIUS – A TENTATIVA DE UMA PEDAGOGIA MÍSTICO-CRISTÃ
Nelson Soares dos Santos[1]
Resumo
O artigo procura fazer uma leitura do pensamento de Comenius buscando resgatar os aspectos místicos do pensador a partir de uma análise da obra Didática Magna. Para tanto, partiu-se de uma análise foucaltiana do pensamento do autor, buscando situá-lo na história do pensamento para mostrar que, por suas raízes místicas, situa-se no Renascimento e na fronteira ciência/não-ciência, o que permite interpretações que o têm como os fundamentos da pedagogia moderna, tanto quanto como um pensador místico-cristão.
Palavras-chave: Pedagogia místico-cristã, Comenius, Educação.
Introdução
Neste artigo procuramos realizar uma proposta de leitura do pensamento de Comenius a partir do pensamento de Foucault, procurando inseri-lo no campo da história do pensamento, no Renascimento, marcado pela idéia de representação; ou no Período Clássico, marcado pela discursividade. Procuramos demonstrar que a tentativa de Comenius ficou bem mais próxima da idéia da representação, portanto a meio caminho da Idade Clássica, pelo fato de o autor tcheco na verdade ter buscado uma tentativa de racionalizar o pensamento místico no campo da educação, não obtendo, no entanto, o sucesso esperado.
Para tanto, procuramos uma análise do pensamento de Comenius por dois caminhos: o primeiro buscando identificar as raízes do pensamento místico; o segundo, e a partir do pensamento foucaultiano, na tentativa de racionalização nos moldes da ideia clássica de ciência.
Comenius – o Pai da Pedagogia Moderna?
Falar de Comenius na atualidade, buscar discorrer sobre seu pensamento, confrontá-lo com as teorias modernas do campo da educação pode parecer desnecessário; no entanto, dado o lugar comum no qual o pensamento comeniano é colocado, talvez seja de grande importância buscar compreendê-lo e tentar localizar o lugar que a ele cabe na história do pensamento educacional. São muitos os educadores modernos que o colocam como o arauto da educação moderna. Coloco aqui uma citação ilustrativa para mostrar tão somente a forma e o contexto no qual ele é colocado.
Libâneo (2005) assim coloca a questão:
Penso ser acertado dizer que as teorias modernas da Educação são aquelas gestadas em plena modernidade, quando a idéia de uma formação geral para todos toma lugar na reflexão pedagógica. Comênio lança em 1657 o lema do “ensinar tudo a todos”, e, não por acaso, é considerado o arauto da Educação moderna. O Movimento Iluminista do Século XVIII fortalece esta idéia de formação geral, válida para todos os homens, como condição de emancipação e esclarecimento (Libaneo, 2005, p.24).
O professor Libâneo não é o único a ver em Comenius o “arauto” da pedagogia moderna, aliás, na citação acima ele anuncia implicitamente a existência de muitos outros, ao afirmar “não por acaso, é considerado o arauto da Educação moderna”. Na citação acima, cremos identificar três questões problemáticas que, segundo Foucault, impedem compreender o pensamento comeniano: a) a história civil é confundida com a história do pensamento (“Comênio lança em 1657 o lema do ´ensinar tudo a todos´, e, não por acaso, é considerado o arauto da Educação moderna”); b) o tempo dos anos 600, até o Iluminismo, é visto como linear e de movimento continuo, colocando a Idade Clássica e o Renascimento já como parte da Idade Moderna; e c) são atribuídos a Comenius, que está no tempo de transição entre o Renascimento e a Idade Clássica, atributos só possíveis na Idade Moderna (“São também teorias fincadas nas idéias de natureza humana universal, de autonomia do sujeito, de educabilidade humana, de emancipação humana pela razão de libertação de ignorância e do obscurantismo pelo saber” (Idem, p. 24).
A questão que, no entanto, se coloca é que o pensamento comeniano se coloca em um espaço definido e diferenciado em relação à ciência moderna, com características de racionalização do pensamento místico por meio da ritualização da vida cotidiana por meio da escola e de outras instituições sociais. Assim como no pensamento comeniano o homem repete a natureza, a escola deverá de alguma forma repetir o espaço da religião e das escolas de mistérios, nas quais o objetivo seria o homem retornar a si mesmo.
Comenius, o pensamento místico e a Renascença
Quando Comenius inicia o projeto de escrita da Didática Magna, obra considerada como o “arauto” da educação moderna, nos idos de 1600, o Ocidente vive um momento rico e conturbado. Rico, por ser um momento em que quase tudo era possível; conturbado, porque, ao se considerarem todas as possibilidades, abriu-se espaço para as mais variadas elucubrações teóricas. Foi o que se convencionou chamar de Renascimento, um momento marcado pela busca do sentido das coisas em qualquer outra época que não fossem as questões do presente. Buscava-se no passado, no futuro, no espiritualismo, no esoterismo; a ordem era, portanto, rejeitar o que estava posto como norma.
Comenius é, pois, um homem do seu tempo. Na tentativa de anunciar o futuro, de arrancar do presente o que vem a ser a modernidade, chega inclusive a escrever uma obra (A Parnorthosia) na qual tenta anunciar a sociedade futura:
Conforme observa Dobbie em sua introdução à Panorthosia (Comenius,1995), há um evidente paralelismo entre os itens tratados nesses três componente da reforma universal. Professores/filósofos cuidam da luz que é o conhecimento da natureza, políticos cuidam da paz que é o poder da humanidade e os religiosos cuidam do reino de Deus, ou seja, do amor e da fé na revelação divina. A melhoria da sociedade está alicerçada no desenvolvimento e disponibilização dos conhecimentos, mas estes não estão dissociados dos deveres do Estado e da Igreja. É tal associação que poderá corrigir os erros do passado e compensar a Queda. Comenius procura tratar das questões da filosofia natural à luz das Escrituras e se esforça para conciliar as descobertas da ciência com a Bíblia. Embora reafirme o princípio aristotélico de que conhecer é conhecer pelas causas, Comenius ressalta o valor cognitivo das artes e enfatiza a importância de seu ensino. Aliás, o artesão é em grande medida o modelo do professor. Por isso aconselha que sua arte seja analisada e desenvolvida. Em diversas passagens se vê que, para ele, a arte não se diferencia da natureza e a ciência é vista como um passo fundamental para compreensão da condição humana no mundo. É importante frisar que o conhecimento das partes e dos ofícios são fundamentais não apenas como modelo cognitivo mas pela dimensão espiritual que devem incorporar natureza e a ciência é vista como um passo fundamental para compreensão da condição humana no mundo. É importante frisar que o conhecimento das artes e dos ofícios são fundamentais não apenas como modelo cognitivo mas pela dimensão espiritual que devem incorporar (Oliveira: 2002, p. 8).
Na sociedade utópica de Comenius, a terra repete o céu, numa busca ininterrupta de similitudes. Em Comenius o conhecimento é a luz da natureza, o artesão é o modelo do professor, e o homem em Comenius desaparece entre Deus e a natureza. É quase um louvor aos princípios de Hermes – “o que é em cima é como o que é embaixo” – em sua Tábua de Esmeralda (Parucker, 2007). Comenius situa-se na tentativa de racionalização do misticismo cristão, ou da cristianização do misticismo, obra também desenvolvida por Jacob Boehme, Louis Claude de Sam Martim, entre outros místicos da era do Renascimento.
Uma das ideias principais do pensamento comeniano é a de que nesta vida não alcançamos o fim último, mas que a educação pode auxiliar na evolução do indivíduo rumo a esse fim – uma forma complicada de anunciar as vidas sucessivas:
Tudo que fazemos ou sofremos nesta vida mostra que não atingimos aqui o fim último, mas que todas as nossas ações, assim como nós mesmos, tendem para outro lugar. O que somos, fazemos, pensamos, dizemos, inventamos, conhecemos, possuímos é como uma escada com a qual, subindo sempre mais, alcançamos degraus mais altos, mas nunca chegamos ao topo (Comenius, 2008, p.24).
Comenius apresenta a vida humana como uma vida de dores e sofrimentos, uma escalada dolorosa, cujo fim não é alcançado. Em Sam Martim , na obra Dos erros e da verdade, está presente a ideia comeniana:
É no momento do nascimento corporal que vemos começarem as dores que o aguardam. É então que ele mostra todas as marcas da mais vergonhosa reprovação; nasce na corrupção como vil inseto; nasce em meios a sofrimentos e gritos de sua mãe, como se fosse para ela um opróbrio dá-lo à luz; que lição é para ele ver que dentre todas as mães a mulher é aquela cujo parto é mais penoso e perigoso! E mal começa ele a respirar, logo é coberto de lágrimas e atormentado pelos mais agudos males. Os primeiros passos que dá na vida anunciam que ele só vem à existência para sofrer e que é verdadeiramente o filho do crime e da dor (Sam Martim, 2006, p. 53).
Apesar da ideia de que a existência humana é uma experiência de sofrimentos, causada pela queda do Paraíso, tanto Comenius quanto Sam Martim desenvolvem a tese de que é possível o homem alcançar um nível de vida no qual ele possa reencontrar sua grandeza perdida. Comenius credita essa tarefa à educação, daí a necessidade de ritualizar o processo educativo, por meio da disciplina, já tão presente nas chamadas escolas místicas dos mistérios.
Trezentos anos depois de ter sido escrita a obra de Comenius, Sam Martim desenvolve a tese de que as ciências cometeram um grande erro e que se afastaram do caminho de lançar luzes ao processo de devolver o homem ao caminho para sua glória. Sam Martim volta então ao que chama “O Príncipe dos Filósofos Divinos” para demonstrar como a ciência e a filosofia cometeram erros na tentativa de racionalizar a busca do caminho pelo qual o homem poderia compreender a realidade e a si mesmo.
Retornamos então a Jacob Boehme (1575/1624), pensador místico, contemporâneo de Comenius, do qual encontramos traduzidas para o português A Sabedoria Divina (1994), A revelação do grande Mistério Divino (1998), A Aurora Nascente (1999) e Os três princípios da Essência Divina (2003), para mostrar como Boehme molda o misticismo às ideias cristãs, buscando demonstrar a justeza do pensamento de Hermes nas Tábuas de Esmeralda, a obra da regeneração por meio do Cristo, construindo a ideia da evolução lenta e gradual do homem de volta ao Paraíso Perdido do Éden. É fundamento do pensamento do “Príncipe dos Filósofos” a lei do triângulo de Hermes ajustada para a ideia da Trindade e dos “Três Princípios Divinos”, trazendo a presença forte dos números três, quatro e nove, mas sobretudo de como essas leis representadas por esses números representam a evolução gradual do homem para o seu objetivo, que estaria, como em Comenius, fora desta vida.
Embora um ser caído e destinado ao sofrimento para obter sua regeneração, passando nesta vida pelas experiências do profundo sofrimento, o homem é para Boehme a mais excelsa das criaturas, pois:
Observa aqui: Adão foi criado a partir do elemento, ou da atração do coração de Deus, que é a vontade do pai, e no elemento está a virgem da força divina (ou a Sofia). O regime externo, que na inflamação dividiu-se em quatro partes, gostaria muito de possuí-la em si. Isto é, a cólera do demônio gostaria muito de ter habitado no Coração de Deus, dominado sobre ele e aberto ali um centrum. Todavia, a cólera não pode fazer isso sem a luz, pois todo centrum é engendrado e aberto pela inflamação da luz. A cólera também gostaria de dominar sobre a doçura; por isso, Deus deixou o sol eclodir, de modo que assim abriu quatro centra ou quatro saídas do elemento (Boheme, 2003, p. 216)
Estão presentes alegorias muito comuns na obra de Comenius, como a criação, a queda, a importância do número quatro (os quatro centrum/centra), e o número três (a luz, a vida e o amor: o coração (vida), a luz ( sol) e o amor (doçura). O coração do homem representa a porta da entrada do bem e do mal no mundo, e, por isso, o homem tem pleno domínio, nele está toda a natureza.
Na Didática Magna, Comenius inicia citando a criação, a queda do homem e a necessidade de se ter uma educação que recoloque o homem na função para a qual foi criado por Deus. O homem tem uma tarefa que extrapola os limites desta vida, daí a necessidade da disciplina, do esforço, pois se ele e por meio dele é que é possível a regeneração de toda a natureza, uma educação eficiente pode tornar o processo mais rápido e mais proveitoso, e Comenius ainda o quer prazeroso.
Ao afirmar que o homem é a mais excelsa das criaturas, Boehme/Comenius nada mais faz que um processo de estabelecer semelhanças entre o homem, os demais animais e a natureza em geral. No capítulo I, parágro 3, lá está: “reuni em ti todas as naturezas”. O homem de Comenius é uma síntese da natureza, imagem e semelhança da natureza divina, destinado, portanto a servir o seu criador e comandar os seus semelhantes inferiores. O homem de Comenius é a própria natureza e com ela se confunde em um processo analógico, e de semelhanças, e de representação, confirmando, portanto, o pensamento de Hermes: “o que está em cima é como o que está em baixo”.
É o que Foucault chama de jogo das similitudes, que define os limites do mundo:
Numa episteme em que sinais e similitudes se enrolavam segundo uma voluta que não tinha termo, impunha-se que se refletisse sobre a garantia desse saber e o termo da sua difusão segundo a relação do microcosmo com o macrocosmo (Foucault, 2005, p. 87).
Em um espaço de tantas similitudes, o homem comeniano haveria de estar marcado, e marcado para a vida eterna. Sua passagem pela terra não tem outro fim que um processo de passagem, transição, oficina. O fim último da vida de tal homem está fora desta vida. Como afirma:
Três são as espécies de vida para cada um de nós e três moradas: o útero materno, a terra, o Céu. (...) A primeira vida prepara para a segunda; a segunda para a terceira, a terceira é em si mesma sem fim. (...) Portanto, a primeira e a segunda morada são como duas oficinas em que se forma: na primeira o corpo para o uso na vida futura, na segunda, a alma racional para a vida eterna; a terceira morada contém a perfeição e o verdadeiro gozo de ambas (Comenius, 2006, p. 47).
Definitivamente marcado. Marcado para a vida eterna. Marcado pelas semelhanças e pelo perigo constante da decadência. Não apenas o homem está marcado; o próprio conhecimento comeniano, a própria didática em sua estrutura, sua forma de escrita estão marcados pela numerologia, pela representação, pela magia, pela classificação, enfim, pelo jogo do signo e do similar. O homem e suas angústias se confundem com a obra.
São três os estágios da vida humana; são três moradas (o útero materno, a terra, o céu); o mundo visível possui três utilidades (à geração, à nutrição, ao exercício; p. 50); são três graus de preparação para a vida eterna (conhecer, dominar e conduzir para Deus e a si mesmo; p. 52); são três os aspectos pelos quais o homem foi colocado entre as criaturas visíveis; são três os aspectos para alcançar os requisitos genuínos do homem (a instrução, a virtude, a religião; p. 55); são três os fins da educação (as coisas, nós mesmos, Deus); e assim poderíamos continuar citando uma infinidade de marcas, seja pelo número 4, conhecido entre os místicos como número do quadrado perfeito; do número 9, como espaço do início da tridimensionalidade; e do número 12, como momento de passagem do profano para a alta astralidade.
Comenius e a Idade Clássica
Comenius tem dificuldade em se desvincular do esoterismo renascentista, de sua formação teológica radical, e com isso o que ele vem a chamar de humanismo nada mais é do que a dissolução do homem na natureza, nas coisas ou na natureza divina. Mesmo quando Comenius fala, nada mais faz que remeter às notações da natureza. A didática comeniana é uma imitação da ordem natural das coisas, daí a classificação, o surgimento da separação entre os pequenos, a juventude e os adultos. Tais características reforçam a presença do autor na idade clássica foucaultiana. Após sair com dificuldade da Idade do Renascimento, não há nada ainda que se assemelhe à Idade Clássica, quando diz:
O primado da escrita é suspenso. Desaparece então essa camada uniforme em que se entrecruzavam o visto e o lido, o visível e o enunciável. As coisas e as palavras vão separar-se. O olho será destinado a ver, e a ver apenas; o ouvido, apenas a ouvir. O discurso terá então por objetivo dizer o que é, mas já não será coisa alguma do que diz (Foucault, 2005, p. 98).
Ternes (2006) identifica no pensamento de Foucault o surgimento das empiricidades modernas, ou o que se pode convencionar chamar de modernidade quando se dá o salto da tríade da Idade Clássica para as novas empiricidades. Se, com Adam Smith, Lamarck e Jones, se faz a história natural, a análise das riquezas e a gramática geral, Ricardo, Curvier e Boop trarão à luz as novas empiricidades da modernidade: o trabalho, a vida e a linguagem. O pensamento comeniano não conseguiu fazer esse movimento epistemológico, do visível ao invisível, do externo para o interno, por não ser mesmo o objetivo de um pensador que tinha como premissas de seu pensamento a vida após a morte e a união de homem e natureza nas obediências às mesmas leis.
No pensamento de Comenius, começando pelos princípios da educação, ainda é o externo, o visível que se fazem presentes. E quanto ao método, ainda é a analogia, a representação, a classificação que predominam. No primeiro princípio, o professor é comparado a um arboricultor; no segundo, o aluno é comparado a um pássaro no ovo; no terceiro, a uma árvore; e a escola, a um jardim bonito e natural. No quarto princípio, o trabalho educativo é comparado ao trabalho do carpinteiro e à formação do ovo. No quinto, ao processo de nascimento dos passarinhos; e assim segue um completo louvor analógico à natureza, sem perspectiva de libertar o processo educativo daquilo que é visível e externo.
Preso a concepções místicas e à ideia metafísica de que o que está em baixo é como o que está em cima, de que a terra reflete o céu, etc., Comenius não poderia jamais alcançar a concepção clássica de um homem autossuficiente em sua própria razão. O homem cartesiano do cogito ainda não aparece em Comenius. É mais provável vermos aqui elementos do pensamento da patrística e da escolástica com profunda influência do pensamento místico que envolveu o pensamento europeu nos seiscentos, setecentos e oitocentos.
Comenius – Fundamento epistemológico da pedagogia moderna?
Quando dizemos que Comenius sofreu profundas influências do pensamento espiritualista e místico e que na tentativa de racionalizar tal pensamento aproximou-se por demais das características do Renascimento, vemos que isso é possível não por uma decisão deliberada do autor, mas pelas próprias características do Renascimento, assim definido por Ternes (2009): “um mundo fantástico, onde a imaginação e razão parecem gozar dos mesmos direitos” (Ternes, 2009, p.1).
Ao situar Comenius na Idade da Renascença, por ser a que mais se aproxima do pensamento místico, a verdade incômoda se impõe – não pode haver cientificidade no pensamento comeniano se consideramos as interpretações de Foucault e Koiré. Sobre o assunto assim expressa Ternes (2009), falando dos estudos de Koiré:
Poderíamos, talvez, separar os estudos renascentistas do filosófo-historiador em dois campos de problematização. De um lado, como já insinuamos, uma reflexão acerca da cientificidade, ou da ausência de todo espírito científico. De outro, a investigação da natureza mesma do pensamento renascentista, aquém do dilema ciência/não-ciência (Ternes, 2009, p. 4).
A grande semelhança do pensamento comeniano ao pensamento de Boehme e outros pensadores místicos nos leva a ver Comenius na segunda opção, mesmo porque os místicos modernos, por meio da Antiga e Mística Ordem Rosae Crucis, advogam não apenas a existência de um Comenius de pensamento místico, mas como membro insigne da fraternidade, como outros grandes pensadores, incluindo-se Descartes e Newton, que Koyré coloca como tendo os fundamentos da ciência moderna. No entanto, no caso de Comemius, seu pensamento não superou a relação da representação/representado, conforme já demonstrado.
Afirmar que o pensamento comeniano se coloca em um campo próprio é dizer que teve uma continuidade paralela ao desenvolvimento da ciência e não se constitui enquanto raízes desta. Assim se pronuncia um místico moderno:
Ajudar na eclosão do ser profundo que existe em cada criança, para fazê-la participar na criação de um mundo que corresponda aos sonhos mais elevados da humanidade, eis nossa verdadeira utopia espiritualista! Comenius já a defendia nos seguintes termos: “chamarei de escola perfeita (....) aquela onde a luz da sabedoria ilumine a mente dos alunos e os faça apreender prontamente todas as coisas manifestas e ocultas, onde as almas e suas emoções sejam conduzidas a uma harmonia universal e os corações, penetrados e plenos do amor divino...”. O educador moderno, de temperamento místico deve lançar seu olhar em uma dupla direção. Deve, paralelamente, fixá-lo na observação atentiva das ações cotidianas das crianças e abri-lo para uma intuição de ordem cósmica que orienta inelutavelmente suas expressões vitais. Sua sabedoria é o resultado de uma compreensão altamente espiritual do papel que lhe incumbe e que para todo o sempre será o de um pioneiro (Pierre, 2004, p. 45/46).
Por estar aquém do dilema ciência/não-ciência, o pensamento comeniano em seu desenvolvimento permanece marcado pelo dualismo. A vida prática e a interação social, tão presentes nas teorias pedagógicas modernas, só têm sentido quando se estabelece um elo entre a razão e a emoção, o racional e o irracional, o finito e o infinito, a natureza e o cosmo. A própria vida cotidiana torna-se o reflexo do aprendizado e do desenvolvimento/evolução gradual do indivíduo, como afirma Pierre (2004):
Uma educação ciosa de dinamizar um desenvolvimento completo e harmonioso da criança deve ter em conta essas realidades, que, com muita freqüência, nos escapam. Sem dúvida, é muito difícil saber a que nível de evolução espiritual chegou cada criança junto à qual agimos. Alguns astrólogos, todavia procuram desvendar esses mistérios e conceberam uma via original, chamada astrologia da evolução ou astrologia cármica, que hoje está sendo gradualmente estruturada (Pierre, 2004, p. 211)
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Aqueles que se consideram de fato herdeiros do pensamento comeniano não negam a possibilidade do múltiplo diálogo com todas as demais teorias, mas ainda permanece o cerne do pensamento – o dualismo, e a vida após a morte, ou o fim último da educação fora desta vida; não rejeitam nenhuma abordagem científica, mas admitem abordagens não-científicas, pois o que se busca é um equilíbrio entre o racional e irracional, em uma complexidade que lembra a interpretação de Koiré sobre o Renascimento, um mundo onde tudo é possível.
Ao pensamento de Comenius como ao pensamento místico rosacruz não se põe a questão ciência/não-ciência, pois não existe, grosso modo, a separação homem/natureza, homem/deus; o máximo que pode existir é um humanismo transcendental. A possibilidade, pois, de ver o pensamento pedagógico moderno com raízes no pensamento comeniano só é possível quando este é tomado em sua superficialidade, ou seja, na análise da vida cotidiana ou no aspecto prático do que ele considera parte da evolução gradual do ser humano.
Na medida em que as teorias pedagógicas modernas deixam de considerar a encarnação/reencarnação, os processos cármicos, a relação homem/natureza, homem/deus, evolução gradual, não se pode considerar que as mesmas possuam raízes no pensamento comeniano. Os demais aspectos, como a relação adulto/criança, organização das turmas por idade, disciplina, etc. são tributários dos fundamentos já citados e servem para prover o desenvolvimento gradual do indivíduo na compreensão de sua missão no mundo e harmonização com o macrocosmo. Dessa forma, se se pode falar de estatuto epistemológico da obra de Comenius, ele está situado na tentativa de racionalizar o pensamento místico na busca do equilibro entre o racional e o irracional, a razão e a emoção, o corpo e a alma, em uma infinita possibilidade dualista e gradual do desenvolvimento humano.
A afirmação de que o pensamento pedagógico comeniano possui o fundamento epistemológico das teorias pedagógicas modernas só tem sentido se o consideramos em sua superficialidade, ou seja, naquilo que foram as mudanças inseridas no cotidiano da relação ensinar-aprender, mestre-discípulo, que colocam a escola em uma nova dimensão dentro da sociedade. A partir do pensamento comeniano, a escola passa a assumir diversos papéis que antes eram da igreja e da família e se organiza de forma a tratar cada indivíduo particular a partir da natureza humana genérica.
Conclusão
O pensamento comeniano não pode possuir em si o fundamento do pensamento educacional moderno, porque, diferentemente dos demais pensadores, não existia no autor da Didática Magna a preocupação da busca do rigor científico, por isso a naturalidade da relação e integração representante-representado, o espelhamento homem/natureza, homem/deus, microcosmo/macrocosmo. A preocupação maior do autor era buscar mecanismos e estratégias de levar a humanidade à evolução rumo à perfectibilidade humana, e, nessa busca, viu o autor, na reformulação da forma como se dava o ensino/formação nas escolas, um possível encurtamento do caminho.
A superficialidade com que se lê o pensamento comeniano, deixando-se de lado sua insistência tão clara na busca dos fundamentos últimos das coisas em uma revelação divina, leva-nos a colocar como laico aquilo que não é laico e construir razões inexistentes.
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[1] Nelson Soares dos Santos é pedagogo pela Universidade Federal do Tocantins, mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal de Goiás e doutorando em Educação e Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
*Texto escrito como exigência de conclusão da disciplina “Epistemologia e Educação”, ministrada pelo Professor pelo PPPProproProfessor Doutor José Ternes.
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