Carpe diem??? Que mundo é esse?
Nelson Soares dos Santos
São exatamente três horas da manha quando começo a escrever este texto. É um devaneio, um desabafo. Por vezes, sinto cansado. A vida, as vezes, parece nos testar ao limite. O ar está denso demais, difícil de respirar. As pessoas parecem mergulhar em um processo de alienação que vai além da consciência. A impressão que tenho é de que já alienaram a própria alma. Estão entendendo errado ou não estão compreendendo nada. Eu grito: que mundo é esse? Será esta uma época tão inusitada que não possamos viver dignamente alguns princípios morais? Não existe nada que seja combinado previamente que possa ser cumprido?
Diógenes de Laércio foi um filósofo contemporâneo de Alexandre. Vivia a gritar pelas ruas com uma lanterna nas mãos a procura de um homem honesto. Diógenes faz parte do grupo de filósofos chamados de cínicos ao lado de Antístenes, Crates e Menipo de Gadara. Os cínicos, diferente do significado que esta palavra inspira em nossos dias, não constitui em uma filosofia que escondia, fingia, ou se iludia com a realidade, pelo contrário, o grande propósito deles era denunciar as grandes ilusões que agitam os homens. Naquela época já estava em decadência o modelo de vida na polis dos gregos antigos, e passava a viver um modelo Helenista, tanto que quando perguntaram a Alexandra por que ele não reconstruía sua cidade natal, ele respondeu: para que, para outro Alexandre destruir? Caso considere perceber um pouco de cinismo neste post, não se assustem, talvez seja o que pede a realidade. Eu poderia ser estóico, talvez em outro post eu seja; epicurista; ou cético, mas hoje, apenas hoje, vou sair de lanterna mão a procura da honestidade.
Os cínicos denunciavam as grandes desilusões da vida a saber; a) a busca do prazer, b) a sede de poder, c) o amor a riqueza, e d) o desejo da fama; isto por que acreditavam que todas estas coisas só leva o homem a infelicidade. Foi também com os cínicos que popularizou a parrhesia, entendida como a liberdade da palavra, o falar com franqueza mesmo que seja dos absurdos cometidos pelos poderosos. Não sou dado ao desprezo pelos prazeres como os cínicos, neste caso, prefiro mesmo os estóicos ou epicuristas; também não sou dado a indiferença, mas como Diógenes diante de Alexandre, uma coisa boa que os poderosos poderiam conceder-me é que afastem do meu sol[1]. É mais ou menos assim. As pessoas que possuem algum dinheiro parece se considerar tão poderosas que já se sentem donas do sol e da lua.
O carpem die de nossos dias.
Uma coisa deixa-me intrigado todos os dias é como as pessoas se orgulham de usar a palavra carpem die. Tal palavra significa aproveite o dia, viva o presente. O que muitos parecem não saber é que tal palavra foi extremamente utilizada nos tempos da decadência do Império Romano por aqueles que já não possuíam mais esperanças. Aproveitar o dia, viver o hoje, confiar o mínimo no amanha é para aqueles que já não acreditam mais no futuro, não possuem nenhuma esperança.
É triste ver estudantes deixando de assistir aulas para aproveitar o presente, ir para os butecos da vida, beber todas, locupletar-se da vida noturna, embriagar a alma e acordar no outro dia cansados, tomar remédio para se sentirem acordados e, tantos, mais tantos jovens nesta escala, tomar remédios para dormir. Quanta gente depois de aproveitar a vida, viver o presente, chega aos quarenta anos totalmente dependentes de calmantes, perdidos, e embriagados das próprias desilusões. Quantos adultos, perdidos vivendo uma vida sem passado e sem futuro. Sim, muitos dos meus amigos que tenho reencontrado não se lembram do passado vivido, por que, e não sei por que razão simplesmente parecem ter escolhido negar o passado para viver um presente intensivo. E desta forma, envolvem na corrupção, na roubalheira, na vida fácil, prostituta, falsa, irreal. E continuam vivendo o hoje, e confiando ainda menos no amanha.
A exigência do viver o presente é poder pagar por ele. A ilusão mais maluca ainda é acreditar que uma vez tendo pagado por algo dá ao individuo todas as condições de desfrutar do que ele oferece. Neste caminho o individuo compra uma televisão de 49 polegadas assina TV a cabo, e passa os domingos inteiros assistindo o programa do Faustão; e ainda justifica, não encontra nada melhor para assistir. O pior é que ainda existem aqueles que passam a tarde inteira com o controle remoto nas mãos, mudando de canal de forma impaciente e não consegue assistir nenhum programa sequer. No desespero de viver o presente as pessoas estão deixando de viver.
Outra situação engraçada é a do aluno que acreditando que ao pagar a faculdade ele já se tornou consciente de tudo que deveria aprender ali, podendo ir para o buteco, chegar atrasado, sair mais cedo, e o professor jamais deve reclamar, e quando se reclama ele logo exclama: eu estou pagando, posso fazer o que quiser. Ilusão tremenda, por que a relação professor aluno nunca será uma relação de produtor e consumidor, simplesmente por que no processo de aprendizagem só é possível aprender de fato quando se aprende junto. Aprende-se quando existe a convivência, a amorosidade competente.
Nas famílias, o viver o presente, tem afastado os pais dos filhos, os filhos do pai, por que ninguém tem compromisso com outro, apenas consigo mesmo, com o viver o presente, que no final é vivido sozinho e na solidão. Homens e mulheres cada vez perdem mais a convicção de que é possível viver uma vida salutar a dois, e no desespero de viver o presente, fazem loucuras, quebram toda a lógica do respeito próprio, do amor verdadeiro, vivendo uma vida de galinhagem em vez de uma vida de amor. Não é por acaso que o carpem diem surgiu na época da decadência do império romano. Não é por acaso que o cinismo como denúncia das grandes ilusões da vida surgiu na época de Alexandre, tempos nos quais a busca desenfreada pelos prazeres era o motor que fazia girar a vida.
Carpem diem!! não importa como.
Tenho visto muita gente falar contra a corrupção. As mesmas pessoas que tem no seu dia-a-dia defendido o carpem diem como modelo de vida. Nenhum compromisso com o coletivo, nenhum compromisso com a virtude, apenas viver o presente, confiar o mínimo no amanha. Uma vez, de propósito, ministrando uma aula de ciência política na disciplina Política Educacional decidi ouvir todos os alunos sobre o que eles achavam ou pensavam sobre a corrupção dos políticos brasileiros. A indignação parecia tão grande que até fiquei um pouco assustado. Pensei comigo mesmo se eu estava errado na minha avaliação daquela turma. Na aula seguinte, resolvi fazer outra coisa; como existiam muitas reclamações de dificuldades na matéria, resolvi ouvir o que podia ser feito para que melhorasse a aprendizagem. No início não sobrou quem criticasse o professor, o coordenador, a faculdade, a biblioteca, e até mesmo o governo pelas dificuldades enfrentadas. Depois de quase uma hora ouvindo, disse a eles que também precisava fazer algumas colocações.
Fui colocando no quadro alguns números para embasar meus argumentos finais. Primeiro, coloquei no quadro a quantidade de alunos na sala: 50 alunos. Em seguida, perguntei, quantos daqueles alunos já havia tirado cópias dos textos com os quais eu estava trabalhando para explicar a gênese do capitalismo e o Estado Moderno. A resposta, 22 alunos. Em seguida, perguntei quantos dos 22 alunos que já haviam tirado as cópias, quantos já haviam lido os textos. o número se reduziu então para 12 alunos. Então, perguntei, quantos daqueles 12 alunos já haviam visitado a biblioteca ou feito um estudo suplementar para auxiliar na compreensão dos textos; e o número reduziu para 09 alunos.
Fiz ainda mais uma pergunta. Quantos daqueles alunos não haviam matado nenhuma aula, e tinham acompanhado toda a explicação do texto. O número se reduziu para 04 alunos. Vejam, em uma turma de cinqüenta alunos, apenas 04 haviam realizado todas as etapas obrigatórias que um aluno tem de fazer para ter uma boa aprendizagem. Não parei, e perguntei: quantos dos quatro alunos tinham o costume de ao chegar em casar revisar as explicações dadas em sala, ou ler, de forma antecipada o texto antes da aula: e número se reduziu para dois alunos.
Em uma sociedade das ilusões e dos prazeres, os indivíduos acreditam que não precisam mais cumprir com o dever. Este mesmo fenômeno se repete no campo da saúde onde os indivíduos gritam em alto e bom som, dizendo que pagam plano de saúde e não consegue viver saudável. Esquecem que o plano de saúde não proporciona uma vida saudável, apenas, acode o individuo quando ele adoece. A vida saudável é construída pelo cuidado de si, não, pagando um bom plano de saúde. Não entendem que a falta de cuidado de si, que a falta de compromisso consigo mesmo é uma forma de corrupção. Os mesmos que reclamam da corrupção dos políticos não aceitam serem parados no acesso controlado, não aceitam serem chamada atenção, não aceitam serem multados quando desobedecem as leis.
A ilusão do individuo é que se paga imposto tem o direito de desobedecer à lei. Afinal, nada pode impedi-lo de viver o pressente, aproveitar o dia, gozar dos prazeres terrenos como se não houvesse amanha. Pior do que isso, é ver que a própria forma de viver o tal presente está corrompida. Os indivíduos querem viver como se estivessem em uma novela de televisão. Parece que tudo que era sólido, na expressão marxista, explodiu no ar, mas não foi só isso, o que restou não dura, começa e acaba em uma rapidez que às vezes não dá para perceber que começou.
As mídias sociais tem corrompidos os indivíduos de tal forma que muitos parecem acreditar que ir na faculdade e ficar na porta paquerando vai dar a eles uma possibilidade de ter uma carreira de sucesso; é como se eles internalizasse os programas de televisão de uma forma tão dura e cruel que acreditam mesmos terem fama, concedida pelo número de seguidores nas redes sociais e o álbum de fotografia, ( a maioria tirada sozinho ou na frente do espelho) tirada com máquina digital. O carpem diem dos nossos dias é totalmente irracional. No desespero de tentar conviver os homens tornam-se cada vez mais solitários, no desespero de ter poder, tornam-se cada vez mais fracos.
Podemos ter esperanças?
É preciso ter esperanças. Podemos e precisamos nos nossos dias, como os cínicos exercitar a parrhesia, o falar francamente, resistir a este modelos deletério de vida, recuperar o espanto diante da vida, olhar o real com franqueza, mas, apenas no sentido de recuperar a possibilidade do cuidado de si. Não creio que devemos com os cínicos utilizar-se da Anaideia – o lançar se a liberdade de fazer e viver de qualquer forma em qualquer lugar -, como meio de enfrentar a situação. Precisamos sim ter esperanças. Em vez de sermos dominados pelas tecnologias devemos aprender a dominá-las. Podemos colocar o celular, o computador, as redes sociais, e tudo o mais ao nosso serviço sem sermos escravos delas.
O aluno, precisa entender que ter o texto na internet, não substitui a necessidade de saber ler e escrever, nem tão pouco a necessidade de poder acessar a linguagem da ciência ou a linguagem erudita. O cuidado de si começa pelo autoconhecimento, o entendimento de que algumas coisas vêm de dentro, não de fora. Um exemplo engraçado de como a alienação é avassalador é ver as pessoas dizerem que não encontra nada no Google. Eu sempre achava isso estranho, por que sempre encontro de tudo no Google quando pesquiso, desde livros, até artigos de revistas científicas nacionais e internacionais. Então escrevi para o Google, solicitando explicação. Eles responderam que quando fazemos uma busca a partir do nosso perfil, o Google via elaborando nossas preferências, então, quando fazemos qualquer busca, automaticamente o Google já seleciona aqueles textos ou pesquisa que está relacionado com o nosso modo de ver o mundo. Olha que coisa.
Estamos ficando cada vez mais, presos ao mundo que criamos para nós. Nunca, a expressão não se vê além da ponta do próprio nariz ou do umbigo está se tornando tão real. Tudo vai conspirando para que a pessoa fique girando em torno de si mesma, sem conseguir olhar para frente, mas, aproveitando o hoje, aliás, transformando o amanha em hoje, o ontem em hoje em um circulo sem fim.
As famílias precisam entender que é preciso conviver. Cuidar do outro e cuidar de si. Parece que nunca esteve tão atual a idéia socrática de que é preciso cuidar da alma, e não é possível cuidar da alma quando ignoro o outro na busca desenfreada da satisfação dos meus próprios desejos. Um mundo em que todos quer ser ouvidos e ninguém quer ouvir é um mundo de diálogo de surdos, e nada pode se esperar a não ser confusão, angústia e desespero. Não é a toa que, o maior número de medicamentos vendidos na atualidade é para as chamadas doenças da alma. Depressão, transtornos de todos os tipos, insônias, e outras mais parece ter se tornado chique ter uma delas. É preciso ter esperança, e lutar por um novo amanha. É preciso, no entanto, também, falar francamente.
E francamente falando, não vamos romper com este mundo deixando os filhos acreditarem que dinheiro sai do caixa eletrônico, precisamos voltar a ensinar o valor do trabalho. Falando francamente, é preciso que saibamos que famílias, lares felizes, não se constroem nos bares, nas orgias, por que nestes lugares não existe a possibilidade do respeito próprio. Falando francamente, é preciso dizer aos nossos alunos que só o fato de pagar em dia a faculdade, ou conseguir entrar em uma universidade pública não irá transformá-los em bons profissionais. Ainda precisa a caminhada, ir às aulas, ler os textos, ouvir os mestres, pensar, fazer.
Francamente falando, temos de dizer aos governantes que não dá mais tanta corrupção, mas também, e francamente, precisamos combater a corrupção que existe em nós. Tem muita gente adoecendo por que já não consegue mais viver com as próprias mentiras, não consegue acreditar em si, e, de tanto se corromper não acredita que pode existir nada de bom pra si. Falando francamente, temos de recolocar as coisas materiais nos seus devidos lugares. Não dá mais para acreditar que o poder de comprar e pagar resolve todos os problemas e traz a felicidade, e pior, falando francamente, temos de aceitar que o dinheiro não compra tudo. Tem coisas que o dinheiro não pode pagar. Bom, agora vou dormir, afinal, são 04 horas e 45 minutos da manha, e minha saúde nada pode pagar.
[1] Certa vez, Alexandre encontrou Diógenes e maravilhado pela sabedoria do Filósofo disse a ele pedir o que ele bem quisesse. Diógenes impressionado com tamanho poder de Alexandre respondeu: afasta-te do meu sol.
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