ALGUNS ASPECTOS DA POLÍTICA EDUCACIONAL DO GOVERNO LULA E SUA REPERCUSSÃO NO FUCIONAMENTO DAS ESCOLAS (*)
(Texto do Prof. Libâneo, que publico aqui por entender importante para o debate sobre o pacto da Educação em Goiás.)
José Carlos Libâneo
Universidade Católica de Goiás
Dentro do tema geral desta Mesa
Redonda no XV Encontro Nacional de Geografia (ENG) – A educação na sociedade
brasileira atual – abordo nesta comunicação alguns aspectos da política
educacional do atual governo e sua relação com o funcionamento da escola
pública, na perspectiva da pedagogia. Inicialmente, apresento fatores externos
e internos que, a meu ver, condicionam a efetivação de políticas educacionais.
A seguir, analiso alguns aspectos da política atual da Educação Básica, e
concluo com uma avaliação crítica dessas políticas.
Minha tese inicial é bastante
pessimista: há uma distância considerável entre as políticas educacionais, a
legislação educacional, a pesquisa acadêmica, e o que o acontece na realidade
das escolas, isto é, no ensino, no trabalho cotidiano dos professores, na
aprendizagem dos alunos. Esse distanciamento das questões mais concretas da
sala de aula e do trabalho direto dos professores com os alunos é um forte
indício da desatenção, do desapreço, com os aspectos pedagógico-didáticos que, em
última instância, são os que efetivamente atuam na aprendizagem dos alunos e no
trabalho dos professores. Paradoxalmente, é na ponta do sistema de ensino, nas
escolas e nas salas de aula, que as coisas efetivamente acontecem, é lá que
sabemos o que os alunos aprendem, como aprendem e o que fazem com o que
aprendem.
Essa questão tem sido pouco tratada
entre os pesquisadores da educação, muito menos entre os técnicos de educação
do MEC e, menos ainda, no âmbito do legislativo, especialmente no Congresso
Nacional onde é notória uma ignorância dos aspectos propriamente pedagógicos da
educação. Para explicar esse desinteresse seria necessária uma investigação
histórica mais demorada sobre os condicionantes da formulação das políticas do
sistema educacional no país. Mas tenho uma hipótese: raramente houve no Brasil
um protagonismo do modo de ver pedagógico
das coisas, o que tem havido há décadas é um modo de ver ora burocrático, ora
sociologizado, ora politicizado, tal como hoje reincide um modo de ver
economicizado. Não deveria ser assim. Tenho um entendimento de que os
legisladores, os pesquisadores do campo da educação, os políticos e militantes
de partidos, deveriam ter em mente que, em paralelo às análises política,
sociológica ou econômica da educação, há uma análise pedagógica. No entanto,
profissionais que estão fora do campo teórico da pedagogia, embora decidam
sobre políticas educacionais, raramente se dão conta do que seja a
especificidade da educação: uma prática
social concretizada numa atuação efetiva na formação e desenvolvimento de seres
humanos, em condições socioculturais e institucionais concretas, implicando práticas e procedimentos
peculiares, visando mudanças qualitativas na sua aprendizagem escolar e na sua personalidade.
A desconsideração de
qualquer um dos elementos dessa definição, descaracteriza qualquer comentário
sobre qualidade de ensino. Penso que uma política educacional que ignora
esse princípio básico perde solidez, pois perde de vista o que é mais peculiar
da ação educativa escolar: a formação humana mediante as práticas de ensino e
aprendizagem.
A pergunta-chave é: por que há
essa distância entre a macropolítica e a micropolítica, entre as grandes
políticas educacionais e o funcionamento interno das escolas, seu cotidiano,
suas normas e rotinas, as salas de aula, as relações professor-aluno, as
práticas de gestão? É o que pretendo responder a seguir.
1.
Fatores externos e internos condicionantes das políticas educacionais
Dois enfoques têm sido utilizados
na análise de problemas da educação: o externo e o interno. A análise externa parte de um olhar mais
global, abordando aspectos sociais, econômicos, culturais, institucionais das
políticas educacionais, das diretrizes curriculares, da legislação, da gestão
dos sistemas de ensino; pode-se dizer que analisa as questões da educação de
fora para dentro. A análise interna aborda
os objetivos, conteúdos as metodologias de ensino, as ações organizativas e
curriculares, a avaliação das aprendizagens, isto é, refere-se ao funcionamento
interno da escola, claro, sem perder de vista os contextos. O enfoque interno
visa pensar a educação escolar “por dentro”, lá onde as coisas acontecem. É
óbvio que legisladores, pesquisadores, dirigentes educacionais, professores,
precisam levar em conta os dois enfoques. Mas, no Brasil, nas últimas décadas, tanto
no âmbito da gestão dos sistemas de ensino como na própria pesquisa
educacional, as análises externas têm se sobreposto às internas. E afirmo que, em
boa parte, as políticas educacionais estão fracassando porque elas não partem
da realidade escolar, de políticas voltadas diretamente às escolas, das
necessidades dos professores, das condições de aprendizagem dos alunos. Os
quadros abaixo mostram a interligação entre fatores externos e internos, ou
seja, como fatores sócio-culturais mais amplos afetam as políticas educacionais
e o funcionamento da escola. Alguns dos fatores externos ao sistema escolar:
·
Insuficiência
ou precariedade do financiamento das políticas educacionais.
·
Insuficiência
de um sistema nacional de educação, articulado.
·
Falta
de uma política global e permanente de formação, profissionalização e
valorização do magistério da educação básica. Total desorganização dos
dispositivos legais relacionados com o sistema de formação de professores.
·
Desarticulação
dos órgãos do governo ligados à educação, nomeadamente, a SESu, o INEP, a SEB, o
CNE, na definição e organização institucional e curricular de políticas de
formação de professores, que se reflete na desarticulação da legislação.
·
Ausência
de informação, de vontade política e de ações estratégicas, por parte dos
governantes e dos partidos políticos, do papel da educação e da cultura no
desenvolvimento da sociedade e do país. A educação e o ensino no Brasil
continuam se prestando muito mais a clientelismos, a trocas de favores
eleitorais, ao jogo de interesses, do que ao efetivo desenvolvimento social e
cultural.
·
Notória
dificuldade das entidades e sindicatos ligados ao professorado em formular uma
frente ampla para se pensar o sistema educacional. Essas dificuldades nascem de
posições divergentes dentro do campo, entre pesquisadores, militantes de
associações, dirigentes de cursos de formação, dirigentes de secretarias de
educação, legisladores, etc.
·
Reincidente
falta de relação orgânica entre a universidade e a educação básica; distorção
salarial entre professores de nível superior e professores da educação básica.
·
Desconexão
entre a pesquisa acadêmica e as práticas escolares, junto a uma linguagem
acadêmica distanciada do mundo de representações dos professores.
·
Total
desestímulo das políticas educacionais para motivar estudantes a buscar os
cursos de licenciatura.
·
Desprestígio
da ciência pedagógica e omissão dos pedagogos, em boa parte, devido à
“sociologização” do pensamento e da prática educacionais.
Como
venho assinalando, os fatores externos acabam por afetar diretamente os fatores
intra-escolares, isto é, o funcionamento interno das escolas:
·
Deficiências
da estrutura física das escolas, de equipamentos e material escolar.
·
Baixos
salários dos professores e funcionários, falta de regulamentação da carreira
profissional e do regime de trabalho adequado.
·
Insuficiente
preparação profissional dos professores e “tecnicização” da atividade docente,
aligeiramento dos cursos de formação, fracasso dos cursos de formação de professores
das séries iniciais.
·
Precarização
do exercício profissional de professores de todos níveis de ensino.
·
Indefinições
curriculares e dificuldades de gestão curricular, bem como a fragilidade das
formas de organização e gestão da escola.
·
Falta
de atendimento às necessidades materiais e culturais dos alunos, como livro didático,
uniforme, biblioteca, práticas esportivas, saúde escolar etc.
·
Resultados
precários na aprendizagem dos alunos.
Em face dessa problemática, o que
as políticas educacionais atuais estão propondo? Passo, agora, ao segundo ponto
da minha exposição.
2.
Política educacional atual da educação básica
Apresento esquematicamente os eixos da
Política Educacional da atual gestão do MEC e sua operacionalização por meio do
Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE. Conforme o portal do MEC na
Internet, os eixos dessa Política são:
− A
redefinição da política de financiamento da Educação Básica- Fundeb;
− A
democratização da gestão escolar;
− A
formação e valorização dos trabalhadores em educação – professores e
funcionários da escola;
− A
inclusão educacional – Fundeb – Ampliação do ensino fundamental para nove anos
e a política do Livro Didático.
O
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) inclui:
− Programa
Brasil Alfabetizado;
− Plano
de Metas Compromisso Todos pela Educação;
− Criação
de Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFETs);
− Programa
de Expansão e Reestruturação das Universidades Federais.
Abordarei
algumas questões problemáticas dessas Políticas, atendo-me apenas aos temas
relacionados com o funcionamento interno das escolas, que é o foco que elegi
para esta comunicação. Conforme mencionei no início, meu foco de análise é o
pedagógico, é a idéia de que uma política educacional deve considerar, em
primeiro lugar, qual concepção de escola favorece melhor a aprendizagem dos
alunos. Os temas são os seguintes: a organização curricular das escolas, a inclusão
educacional, a gestão das escolas e a formação de professores.
Organização
curricular das escolas
Este tópico não consta
explicitamente dos atuais documentos do MEC, ficando presumido que deu-se continuidade
à mesma política gerada no governo FHC, ou seja, a organização curricular por ciclos de escolarização, a flexibilização da avaliação da
aprendizagem pela progressão automática e a integração de alunos portadores de
necessidades especiais em classes no ensino regular.
Em relação aos ciclos de
escolarização, o principal argumento de sua adoção no sistema escolar é de que se tem um período maior para
consolidação das aprendizagens, à medida que se pode respeitar os diferentes
ritmos de aprendizagem dos alunos. Com isso evita-se a repetência e a evasão
escolar. Tal como outras inovações, o sistema de ciclos foi implantado na maior
parte dos casos sem maiores cuidados com as práticas de ensino já em uso pelos
professores, sem preparação das escolas e das condições físicas e materiais
necessárias, sem rever profundamente as práticas de gestão escolar. Onde foi implantado,
esse sistema não está correspondendo ao que se esperava em termos de
efetividade das aprendizagens, ou seja, não está proporcionando qualidade de
ensino. Após 12 anos dessa política curricular, o que sabemos é que alunos
continuam saindo do ensino fundamental semi-escolarizados, ampliando a exclusão
escolar e social.
Na concepção dos ciclos de escolarização é
evidente uma visão demasiado romântica da criança, acreditando-se que aprender
é algo inato, algo que vem de dentro da pessoa. Então, o desenvolvimento seria
natural, espontâneo, bastaria colocar a criança na escola, oferecer as
situações de aprendizagem, e ela desenvolveria suas habilidades intelectuais
com base no seu próprio ritmo. Como cada criança tem o seu tempo próprio de
maturação biológica e mental, como todas elas têm o dom da inteligência, mesmo
que em diferentes graus, a professora teria que respeitar esse ritmo, a criança
não pode ser reprovada e a avaliação escolar é um absurdo porque trata por
igual pessoas diferentes. Tenho uma idéia diferente disso. Baseio-se na teoria
de Vygotsky para afirmar que aprender é uma atividade eminentemente
sociocultural, ou seja, há uma determinação social e histórico-cultural da
formação humana, ela não é um processo natural, espontâneo, ela implica uma
ação pedagógica, uma intencionalidade, um ensino sistemático. O aluno aprende
na escola quando os outros, inclusive a professora e o próprio contexto
institucional e sociocultural, o ajudam a desenvolver suas capacidades mentais,
com base nos conhecimentos, habilidades, modos de viver, já existentes na
ciência e na cultura. Ora, esse processo não é nada espontâneo, e nem depende
somente do ritmo de aprendizagem de cada aluno. Depende de uma de uma ação
pedagógica consistente, de um planejamento didático baseado num currículo
comum, da atuação intencional dos adultos em uma organização sólida, depende de
que eles provoquem nos alunos o desejo de aprender, de serem melhores pessoas,
de compreender melhor as coisas. Em minha opinião, não há nada de errado em se
ter várias séries de estudo, começando por onde se deve começar, e seguindo-se
os conteúdos em níveis cada vez mais complexos. Os professores sabem muito bem
o que um aluno pode aprender conforme sua idade e com isso podem programar a
seqüência de conteúdos e providenciar na escola as condições necessárias para
que o maior número possível de alunos consiga aprender esses conteúdos. Se o objetivo
das escolas é desenvolver capacidades de ser e agir através dos conteúdos e do
desenvolvimento mental dos alunos, então a criança desenvolve sua inteligência
aprendendo solidamente, e isso não é algo espontâneo e natural, mas que depende
da ação da escola e do professor.
A flexibilização da
avaliação da aprendizagem, incluindo a aprovação automática, compõe a lógica da
introdução dos ciclos. Quem já se deu ao trabalho de analisar o que vem
acontecendo nas escolas com a progressão continuada irá verificar que ocorre aí
uma das mais gritantes formas de exclusão. Qualquer professora sabe que no
final do ano há alunos que conseguiram atingir o esperado, há os que
conseguiram mais ou menos e os que não conseguiram o nível de aproveitamento
esperado. Ai vem aquela conversa: essa criança não tem ambiente em casa, não
fez as tarefas, não tem família organizada, a mãe trabalha fora, etc., então
ela merece ser promovida. Por acaso não se trata de uma forma de exclusão? E as
excluídas não são precisamente aquelas crianças mais pobres?
Ao contrário da concepção de avaliação nos
ciclos, penso que para se chegar a aprendizagens bem sucedidas são necessários
objetivos, é preciso estabelecer níveis de chegada, é preciso um sistema de
avaliação para confrontar o trabalho feito com os objetivos esperados, como
diagnóstico e acompanhamento da qualidade do trabalho que se faz.
Evidentemente, espero dos professores que respeitem as diferenças dos alunos,
seus ritmos e níveis de desenvolvimento, mas o afrouxamento da avaliação
compromete as aprendizagens. Em muitos casos, o prejuízo recai sobre as
crianças pobres, entregues à sociedade sem os requisitos básicos para conseguir
emprego, usufruir dos bens culturais, participar da vida política. A meu ver, os
alunos que não estão acompanhando as aulas, devem ser beneficiados por
programas específicos de aceleração escolar, de reforço.
Em síntese, os ciclos, a
flexibilização da avaliação, a integração de alunos especiais em classes
regulares e a escola de tempo integral são mostras de um falso pioneirismo, são
medidas aparentemente progressistas, mas não vão fundo na solução dos problemas
da escola brasileira. Os educadores foram colocados numa armadilha, a proposta,
na aparência, é altamente humanista, de respeito às diferenças, aos ritmos
individuais de aprendizagem, etc., mas não atinge o que mais se espera da
escola: o desenvolvimento das competências e habilidades cognitivas através do
domínio dos conteúdos escolares, propiciando aos alunos meios para participação
competente e crítica na vida social, profissional, cultural.
A inclusão educacional
Vou
comentar, em destaque, a questão da inclusão educacional e, em particular, a
inclusão em classes comuns de alunos especiais. Tem havido muita confusão sobre o tema da escola inclusiva,
principalmente porque para muita gente falar em escola inclusiva é falar apenas
da integração de alunos com necessidades especiais nas escolas regulares. Trata-se
de uma idéia muito restritiva de escola inclusiva. Para mim, escola inclusiva
é, em primeiro lugar, uma escola comum no sentido de escola para todos, para
sujeitos diferentes, numa sociedade em que caibam todos. Quer dizer, estou me
referindo, antes de tudo, ao direito universal de todos em poder compartilhar
de uma escolarização que capacite para a vida profissional, social, cultural,
política, implicando uma alta qualidade cognitiva e operativa das
aprendizagens, considerando diferenças de origem social, de cultura, raça,
sexo, religião, físicas, psicológicas etc. Então, eu penso que inclusão é muito
menos uma medida institucional ou um procedimento pedagógico, e muito mais um
princípio social, um valor social, um modo de encarar a vida e a nossa relação
com os outros.
A integração de alunos portadores de
necessidades especiais em classes regulares é uma questão muito delicada, mas
não posso deixar de tratá-la, porque acho que há ai um grande foco de confusão,
de armadilhas e equívocos. Quero afirmar, antes de tudo, minha crença de que todas as pessoas portadoras de necessidades
especiais têm o direito de estar inseridos na sociedade e de receber todos os
cuidados sociais, médicos, psicológicos de que necessitam para terem uma vida
digna e satisfatória. Acima de tudo, têm o direito de serem reconhecidos em
suas diferenças e em suas limitações, e de usufruir de ações eficazes que lhes
possibilite inserir-se na sociedade. Mas, em princípio, acredito que a
melhor política de inclusão para as crianças e jovens portadores de
necessidades especiais, nas condições atuais do ensino regular, ainda é oferecer-lhes
cuidados especiais em instituições especializadas, com educadores qualificados
para as várias necessidades a atender, com possibilidade de atendimento em turmas
pequenas ou individualizado.
Não posso concordar,
portanto, com medidas de inclusão generalizantes, homogeneizadoras, frequentemente
impostas ao sistema de ensino e às escolas. Não se pode decretar uma educação inclusiva em que não se distinguem
tipos de diversidades ou desigualdades e não se pergunte se a escola e os
professores dão conta de fazer isso. Exigir níveis de chegada iguais para
diferentes pontos de partida é fator de exclusão. Temo que, ao invés de estarmos praticando uma ação democrática,
solidária, estejamos provocando efeitos contrários aos desejados. Temo que
ações organizacionais e pedagógicas tidas como democráticas, justas,
solidárias, destinadas à inclusão nas escolas regulares de alunos portadores de
necessidades especiais, sejam, de fato, provocadoras de mais exclusão, mais
discriminação, mais marginalização. Vamos ser realistas: em vários municípios
onde há o programa de inclusão desse tipo tem-se um ensino de baixo nível tanto
aos chamados alunos “normais” quanto àqueles portadores de necessidades
específicas, não estamos fazendo bem nem uma coisa nem outra.
Faço
uma pergunta muito séria e muito responsável: com as precárias condições de
funcionamento de nossas escolas públicas, levando à baixa qualidade de ensino e
aprendizagem dos alunos já matriculados, será justo, democrático, tanto para os
alunos a serem incluídos, para os alunos já matriculados, como para os
professores, forçar medidas de inclusão dos portadores de necessidades
especiais? No desejo, e insisto, na maior parte das vezes generoso, de
propiciar a esses alunos oportunidades iguais, dignidade, justiça, não se está
produzindo uma ação contra a dignidade, a justiça, dificultando as condições de
aprendizagem e socialização de ambos os grupos? Não chegaremos, com isso, a uma
socialização de prejuízos e desvantagens, já tão acentuadas por fatores que extrapolam
o interior das escolas como a pobreza, a violência, o desemprego? (Cf. Libâneo,
2006).
A gestão das escolas
É uma idéia corrente tanto no âmbito
das políticas oficiais quanto em segmentos de educadores chamados
progressistas, de que democratizar a escola é democratizar as práticas de
gestão. Ela surge no contexto da crítica ao autoritarismo que vigorou em nosso
país. A idéia de que democratizando as formas de gestão se renova a escola e
melhora o desempenho dos alunos, não é nova. Desse modo, o objetivo da escola
seria estabelecer na instituição, relações democráticas e participativas. É
claro que o princípio é defensável, mas a tendência em transformar a gestão
democrática como fim e não como meio tem gerado muitas confusões. Democratizar
a gestão deve ser um meio para se atingir objetivos de aprendizagem, que é o
objetivo primordial das escolas. O que tem acontecido em algumas políticas
educacionais de esquerda é hipertrofiar o papel da gestão democrática, caindo
no mesmo equívoco de propostas neoliberais de hipertrofiar o papel da eficácia
gerencial. Penso que o principal papel da gestão escolar é o de favorecer o
trabalho docente e, dessa forma, favorecer a aprendizagem dos alunos. São de
pouca valia inovações como gestão democrática, eleições para diretor,
introdução de modernos equipamentos, e outras novidades, se os alunos continuam
apresentando baixo rendimento escolar e aprendizagens não consolidadas.
Formação de professores e condições de
exercício profissional
Sabemos
que para se implantar uma escola
inclusiva, um currículo valioso e uma gestão eficaz, são necessários
professores. Provavelmente, ao lado do financiamento do ensino, estamos frente
à mais importante prioridade da educação brasileira. No entanto, a atual gestão
do MEC parece ter centrado suas ações em relação à formação de professores na
educação a distância dando seqüência, neste aspecto, a uma das ações
implantadas já na gestão FHC. Com efeito, o MEC implantou o sistema nacional de
ensino superior a distância, com o Programa UAB – Universidade Aberta do
Brasil, para formação inicial e continuada. A outra medida é o piso salarial de
R$ 850,00, a ser implantada em 10 anos.
3. Avaliação
crítica
A
partir da menção a esses quatro pontos que caracterizam os aspectos
intra-escolares e que formam a base para o trabalho dos professores com os
alunos, apresentarei uma avaliação crítica desses aspectos das políticas
educacionais.
Em primeiro lugar, não existe entre os
responsáveis pelas políticas educacionais, os legisladores e os investigadores
da educação escolar um acordo sobre a escola que se deseja, sobre os objetivos
formativos. Hoje temos objetivos para todos os gostos. Um segmento de
educadores diz: queremos que a escola seja principalmente um espaço de
socialização dos alunos, que seja um lugar de encontro e compartilhamento entre
as pessoas, que seja um lugar para que sejam acolhidos seus ritmos, suas
diferenças, suas inclinações pessoais, então, nesse caso, o sistema de ciclos é
ótimo, a flexibilização e o afrouxamento da avaliação é coerente. Outro
segmento diz: queremos uma escola de resultados, que formem alunos que passem
no vestibular. É claro que essas coisas são importantes, mas penso que esperar
isso da escola é muito pouco. Uma outra visão é a que concebe a escola pública
como o lugar de atender tanto a necessidades individuais dos alunos como a
necessidades sociais. Escola democrática é a que, antes de tudo, através dos
conhecimentos teóricos e práticos, propicia as condições do desenvolvimento
cognitivo, afetivo e moral dos alunos. E que faça isso para todos os que
disponham das competências físicas e intelectuais requeridas para isso.
Aprender, então, consiste no desenvolvimento de capacidades e habilidades de
pensamento necessárias para assimilar e utilizar com êxito os conhecimentos nas
várias instâncias da vida social.
O que está acontecendo no país é um arremedo de políticas
educacionais e uma ausência de políticas educativas. Observe-se que faço
distinção entre políticas educacionais,
que são amplas, são do lado macro, e políticas
educativas, que são as políticas para a escola, para o ensino e
aprendizagem. As políticas educacionais, desde a época da transição política, é
identificada com a visão economicista. A avaliação externa transformou-se em
motor das reformas educacionais. As metas são quantificadas, muito mais em
função da diminuição dos custos do ensino do que de uma sólida preparação
escolar dos alunos. Força-se a melhoria dos índices educacionais sem ampliação
das verbas para o que é realmente prioritário. As escolas devem mostrar
produtividade com base em resultados possíveis de serem falseados. Alunos são
aprovados sem critérios claros de níveis de escolarização. Os números aparecem
positivamente nas estatísticas, mas os aprovados não sabem ler e escrever. Estamos,
efetivamente, frente a uma pedagogia de resultados: põem-se as metas, e as
escolas que se virem para atingi-las. Mas se virar com que meios? Onde estão as
instalações físicas? O material didático? O atendimento à saúde das crianças?
Os salários e as condições de trabalho dos professores? Onde estão as
professoras que dominam os conteúdos, que sabem pensar, raciocinar, argumentar
e têm uma visão critica das coisas? Não contamos, para isso, com um sistema nacional de educação,
na forma de um sistema único de educação pública, com metas pedagógicas conseqüentes.
O que temos são metas econômicas, burocráticas.
Recorro
a um recente livro denominado: A escola
não é uma empresa – O neo-liberalismo em ataque ao ensino público. Segundo
o autor, há sinais visíveis de que as reformas de inspiração liberal estão
levando à mutação da instituição escolar em três direções ligadas entre si:
desinstitucionalização, desvalorização e desintegração. Desinstitucionalizada, ela se transforma em prestadora de serviços,
sujeitas a gerenciamento tipo empresarial e obrigação de atingir resultados. Desvalorizada (apesar dos discursos
oficiais enobrecedores!), pois suas finalidades de transmissão de cultura e dos
elementos simbólicos com função emancipadora são substituídas pelos imperativos
da eficácia e produtiva e da inserção profissional. Desintegrada, em decorrências dos mecanismos de mercado nela
introduzidos (Laval, 2004), distorcendo seus objetivos educativos.
Em
segundo lugar, limitar programas de formação de professores a ações de educação
a distância mostra um descaso com a educação pública e os professores. Qualquer
educador com um mínimo de conhecimento de escola sabe que formar professores a
distância resulta em formação aligeirada e frágil. Com essa mentalidade economicista,
vamos formar no país milhares de professores que vão chegar às escolas sem a
competência profissional, tornando ainda mais desastrosos os já baixos
resultados da educação fundamental. Pois, efetivamente, a educação a distância
vem apenas como programa de formação do professor executor e de certificação em
larga escala, como o diploma fosse suficiente para o exercício profissional. Já
não bastasse o notório esvaziamento do conteúdo do trabalho docente, há que
considerar que as escolas não dispõem de equipamentos, de material didático, de
instalações físicas. Tudo isso concorre para gerar um imenso prejuízo para os
alunos das escolas públicas. Ou seja, este é mais um governo que não investe em
um sistema articulado de formação inicial de professores com uma sólida
formação cultural e científica em cursos regulares nas instituições de ensino,
e em programas de formação continuada nas situações de trabalho.
Quero
dizer que, obviamente, não sou contra o uso das tecnologias da educação. Sou
contra a fetichização das tecnologias e seu uso apenas para formar professores
em massa e em tempo reduzido, com um programa meramente instrumental. O
professor “tarefeiro” deixa de ser sujeito, o lugar dos sujeitos passa a ser
atribuído à tecnologia. Acredito que a formação do professor inclui,
evidentemente, uma instrumentação, a apropriação das tecnologias. Mas, antes
disso, o professor precisa dominar bem os conteúdos, ter uma formação cultural
sólida e uma visão crítica do seu trabalho e da sociedade. Enfim, como escreve
a pesquisadora Raquel Barreto, a presença das TCI na educação, a despeito de
sua importância, não é condição suficiente para a busca de soluções de
problemas educacionais, sejam eles novos ou velhos.
Em terceiro lugar, retornando à minha
tese inicial, penso que as políticas
educacionais devem subordinar-se às políticas educativas para a escola, isto é,
para as condições do ensino e aprendizagem na escola. Não há essa
tradição em nosso país. Ao contrário, o mais comum tem sido o caminho inverso,
que é tratar primeiro das políticas, do currículo formal, e esperar que a norma
prescrita aconteça nas escolas, nas práticas pedagógicas nas salas de aula. Há
nas estratégias de ação política, no planejamento, uma superposição da análise
externa sobre a análise interna dos problemas da formação, onde se verifica
muito mais uma visão de sociólogos e políticos e uma omissão dos pedagogos. No
entanto, os fatos constatados nas
escolas são muito concretos: nossas crianças e jovens não estão aprendendo ou
não estão aprendendo como precisariam aprender; nossos professores, pelo motivo
que for, estão com dificuldades para ensinar; aumentam a cada dia os problemas
sociais, culturais, disciplinares, dentro da escola, e as dificuldades dos
professores para lidar com eles. Por sua vez, as soluções tidas como
“progressistas” multiplicaram esses mesmos problemas.
Acredito que a análise externa
das questões educacionais é sumamente importante, elas nos põem alertas para
uma visão política e contextualizada das coisas. Mas insisto: o processo
educativo, o processo de ensino é endógeno, ele acontece de dentro para fora. O
que confere qualidade ou não ao sistema de ensino são as práticas escolares, as
práticas de ensino, os aspectos pedagógico-didáticos, ou seja, a qualidade
interna das aprendizagens escolares. Este deve ser o critério básico para a
formulação das políticas educacionais. Para isso, é preciso um novo acordo
entre educadores sobre as políticas educativas para a escola: que escola
queremos, que perfil de alunos queremos formar, que necessidades são postas
pela realidade escolar e das salas de aula, o que significa qualidade interna
das aprendizagens?
Junto a isso, outras lutas muito concretas devem compor uma
frente ampla entre os vários segmentos sociais em favor da educação pública,
baseada numa pauta mínima:
a) Estruturação
de um sistema nacional de educação, na forma de um sistema único de educação
pública, com garantia total de recursos públicos.
b) Intervenção
decisiva dos sistemas de ensino nas questões intra-escolares, especialmente em
formas de gestão pedagógica, curricular e de metodologias de ensino, que
assegurem os mais elevados índices de aproveitamento escolar para todos os
alunos;
c) Adoção de medidas
propiciadoras de salário digno, carreira profissional, condições de trabalho,
condições de permanência dos professores em uma só escola com 40h;
d) Ações em âmbito nacional que
assegurem a todos os professores, especialmente das séries iniciais, o domínio
de conteúdos escolares e de habilidades cognitivas, bem como de elementos de
uma cultura geral abrangente;
e) Campanha nacional contra a
formação de professores em massa em favor de uma sólida formação cultural e
científica, limitando o ensino a distância a recurso complementar de formação.
f) Revisão da legislação atual
sobre a formação de educadores, retomando-se a preparação específica de
pedagogos especialistas e readequação das diretrizes para a licenciatura para
docência na Educação Infantil e Ensino Fundamental.
Conclusão
Em face das questões postas, é útil
o conselho de Gramsci: pessimismo na razão, otimismo na vontade. A escola, como
uma das instâncias de democratização da sociedade e de promoção de uma
escolarização de qualidade para todos, tem como função nuclear a atividade de
aprendizagem dos alunos. Na tradição da teoria histórico-cultural, a
aprendizagem escolar está centrada no conhecimento, no domínio dos saberes e
instrumentos culturais disponíveis na sociedade e no desenvolvimento de
competências cognitivas, da capacidade de pensar e de aprender. Em contraste,
todas as concepções de escola que desfocam esta centralidade, podem estar
incorrendo em risco de promover a exclusão social. Não adianta divulgar índices
altos de atendimento escolar se a aprendizagem escolar continua praticamente
nula, assim como é insuficiente uma escola apenas voltada para a vivência de
experiências culturais, socializadoras, integradoras.
Lamento
terminar minha participação nesta Mesa, também, de modo pessimista: não é ainda
desta vez que temos um Plano para salvar a educação, ou como disse o presidente
Lula, uma revolução na educação. Ainda não temos políticas educacionais para
livrar a escola brasileira da sua degradação, que ponham termo ao
empobrecimento intelectual da formação de professores e das crianças e jovens.
Minha sensação hoje, com 40 anos de profissão exclusivamente na educação e no
ensino, é parecida com a declaração do cineasta João Moreira Salles, registrada
na Folha de S. Paulo de 14/8/2007: “As nossas ambições se tornaram mais
medíocres!” Num dia destes, após uma fala que eu fazia a professoras de uma
escola de periferia de Goiânia, uma professora me disse emocionada: “Professor,
você está falando tantas coisas que o professor precisa fazer, mas, professor
Libâneo, as professoras não têm sonhos...” Eu não soube o que responder.
Referências bibliográficas
LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa – O neo-liberalismo
em ataque ao ensino público. Londrina: Editora Planta, 2004.
LIBÂNEO, José Carlos. Organização e gestão da escola – Teoria e
Prática. Goiânia: Editora Alternativa. 5ª. ed., 2006.
LIBÂNEO, José Carlos. Sistema de ensino, escola, sala de aula: onde se produz a
qualidade das aprendizagens? In: Lopes Alice C. e Macedo, Elizabeth (orgs.). Políticas
de currículo em múltiplos contextos. São Paulo, Cortez, 2006.
(*) Texto de conferência proferida no XV ENCONTRO NACIONAL DE
GEÓGRAFOS, realizado no período de 20
a 26 de julho de 2008, São Paulo, promovido pela
Associação de Geógrafos do Brasil (AGB). Publicado nos Anais do XV ENG.
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