Ética, Jornalismo e Política - O que está acontecendo?
Preocupado com os últimos passos do jornalismo goiano resolvi estudar mais sobre esta área que se chama comunicação. Encontrei um texto interessante que traduz todas as preocupações que tenho tido. Reproduzo aqui no blog para que meus leitores compreendam melhor o que se está passando em Goiás na atualidade. Embora seja um texto grande para um blog, é importante que se leia o todo.
Uma nova ética para uma nova modernidade
Bernardo Kucinski,
São Paulo, abril de 2002
O jornalismo brasileiro vive hoje uma crise ética muito especial. Mais do que a incidência de desvios éticos pronunciados, a característica dessa crise é o vazio ético. Nas redações, deu-se uma rendição generalizada aos ditames mercantilistas ou ideológicos dos proprietários dos meios de informação. A liberdade de informar e o direito de ser informado, canonizados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e erigidos em ideologia dos códigos de ética jornalística nos mais diversos países, tornaram-se letra morta.
Não por acaso, esse novo ambiente ético no jornalismo é adequado aos valores do neoliberalismo econômico e foi instrumental ao seu processo de implantação. Nesse sentido é um equívoco considerar o vazio ético das redações uma disfunção do jornalismo. Ele existe porque tem uma função. E resulta de um embate ideológico que se dá além da esfera estrita da comunicação, um embate entre propostas divergentes de civilização e de organização.
No dia a dia, o vazio ético é reforçado por mecanismos diversos entre os quais o fim da demarcação entre o jornalismo e assessorias de imprensa, a fusão mercadológica de notícia, entretenimento e consumo; a concentração de propriedade na indústria de comunicação, a crescente manipulação da informação por grupos de interesse e principalmente a mentalidade pós-moderna.
Quando aceitei o convite, que tanto me honra, para esta aula inaugural , já tinha algumas dessas idéias delineadas. Mas o que me levou realmente a aceitar o convite de bom grado, como uma oportunidade feliz e não apenas como mais uma tarefa, foi um incidente ocorrido algumas semanas antes, que desencadeou um profundo processo de revisão das minhas ideais sobre o problema da ética no nosso jornalismo. É disso que pretendo tratar hoje. Antes, preciso explicar quais eram minhas ideais sobre a ética jornalística.
Confesso que era um fundamentalista no tocante à ética jornalística. Minha paixão pelo jornalismo foi tão absoluta que vesti a camisa da ética jornalística como uma ideologia, no sentido mesmo de camisa de força, conforme denunciado por Cornelius Castoriades. Ou seja, eu me colocava dentro da ética jornalística, e por isso não a podia ver criticamente ou como parte da ideologia de uma época ou fé, uma hegemonia datada. É bom que o jornalista se coloque dentro da ética de sua profissão, mas o professor e acadêmico deve poder olhá-la também de fora. Quem me chamou a atenção para o caráter “idealista” de minha postura foi o professor e colega Manuel Chaparro. Não o refutei na ocasião, mas sua observação foi fazendo um lento estrago nas minhas convicções.
Nessa concepção idealista, eu pregava que o jornalismo é uma atividade que se define por uma ética e não por uma técnica. E que essa ética é formada por um imperativo categórico, ou seja um preceito universal de conduta aplicável em todas as circunstâncias, e que não admite adaptação ou compromisso.É o imperativo categórico da verdade. Por esse imperativo, o jornalismo existe para socializar as verdades de interesse público, para tornar publico o que grupos de interesse ou poderosos tentam manter como coisa privada .O absolutismo dessa ética pode ser sentido por uma de suas implicações, a de que o jornalista não é responsável pelas conseqüências da divulgação de uma verdade de interesse público, seja ela qual for. Mas é responsável e até cúmplice das conseqüências de não ter socializado essa verdade de interesse público. Na minha ética jornalística absolutista, o valor responsabilidade não é simétrico.
É uma ética kantiana, na qual o valor verdade transcende todos os demais valores e se coloca de modo absoluto. E por que a ética kantiana se aplica ao jornalismo ? Porque se o jornalista começa a ponderar sobre as conseqüências das verdades que tem a dizer, sobre a conveniência de revelar parte da verdade e omitir outra, começa a assumir um outro papel social; deixa de ser jornalista para ser um censor e um juiz daquilo que o povo deve ou não deve saber. Na ética kantiana, não cabe esse julgamento. A verdade não pertence ao jornalista, que apenas recebeu um mandato da sociedade para procurar os fatos, e até certos privilégios éticos para executar esse mandato, como o direito de bisbilhotar na vida alheia ou de surrupiar certos documentos. desde que a serviço do interesse público.
Na cultura anglo-saxônica, em que essa ética jornalística prosperou e ganhou status de ideologia do jornalismo, há até mesmo duas etimologias para expressar o valor responsabilidade, na ética do jornalismo, em sua relação como valor verdade; fala-se que o jornalista deve ser “ accountable” por suas ações “, mas não é “ responsible” pelas verdades que revela. Poderíamos traduzir como: o jornalista é responsável por todos os seus atos, mas não pode ser responsabilizado pelas conseqüências de ter revelado verdades. Ou poderíamos dizer: a responsabilidade do jornalista esgota-se no ato de revelar a verdade.
Explico tudo isso que já se sabe, até de modo um pouco maçante, para mostrar que essa ética é fundamentalista: não permite nenhuma redução da verdade, nenhum compromisso, sob nenhum pretexto, porque por definição isso não é necessário, já que não é da conta do jornalista o que acontece depois que revelou o que tinha que revelar.
Essa busca de verdade de interesse público implica na adesão a uma deontologia, uma ética de procedimentos e que não se limita à técnica de bem escrever, abarcando todas as etapas da busca de verdade ou, para usar uma palavra mais precisa, da busca da veracidade dos fatos. E os fundamentos dessa deontologia são a honestidade intelectual e a perícia .O jornalista ético é o que age com a mesma honestidade intelectual que caracteriza o bom cientista. Aí está então, em resumo, o que vinha sendo minha visão da ética jornalística e a essência do que eu passava aos meus alunos e colegas sempre que havia oportunidade.
Tudo isso entrou em crise no incidente que vou relatar. Estava dando a penúltima aula de um curso de pós-graduação lato sensu denominado “Saúde e Cidadania”, de um módulo sobre jornalismo social. A aula tratava de ética. Minhas idéias provocaram uma reação alérgica imediata e muito forte que culminou com uma rebelião da classe. O mote geral era o de que eu estava exigindo posturas irreais, que em todas as redações o jornalista tem que fazer o que o patrão manda, e o que a publicidade manda. E choveram os relatos pessoais de incidentes de supressão de matérias, de opiniões, de trechos e de pautas.
Foi então que eu me dei conta que aquela era uma das classes mais homogêneas que eu já havia tido: eram quase todos jornalistas em serviço ativo, nas mais diversas redações, desde A TV Globo até revistas técnicas setoriais. E quase todos na faixa dos 30-35 anos de idade, ainda jovens mas não novatos. A maioria já tinha uns dez anos de experiência nas costas. Era a revolta de uma categoria toda contra a exigência de uma ética.
Perguntei a eles qual a diferença entre um médico que mata e um jornalista que mente? Ofendidos, não responderam. Disse a eles que navegar é preciso, viver não é preciso, ou seja, ninguém precisa ser jornalista. Também não gostaram. Responderam que tinham sim o direito de serem jornalistas sem precisarem ser éticos. Por necessidade de sobrevivência. Não sendo deles a culpa e sim do sistema, tinham esse direito. Finalmente disse a eles que eu não estava ali para fazer julgamentos morais, mas que eu só podia ensinar na escola uma ética, a do jornalismo livre e comprometido com o interesse público, que se desenvolveu nos melhores tempos do jornalismo Ocidental. Disse também que era um equívoco pensarem que a violência intelectual que cada um deles sofria no dia a dia das redações, não teria conseqüências de longo prazo. Disse que era um equívoco banalizarem essa situação.
O incidente me abalou profundamente, mas depois comecei a rememorar situações que já vinham de longe, e mostravam que havia algo de furado na minha posição fundamentalista de ou tudo ou nada. Lembrei-me da descoberta de que muitos alunos de jornalismo aprendem a cascatear, ou seja, a inventar matérias, já no primeiro ano do curso. Forjam entrevistas que não existiram. Cozinham matérias de outros sem se referir à autoria inicial. Digamos que isso está ainda no universo das malandragens da adolescência escolar, como o hábito de colar em provinhas. Mas a dimensão é outra, quando se sabe que cascatear é um traço marcante do jornalismo brasileiro.É possível até que esse verbo nem exista no jargão jornalístico de outras culturas.
Lembrei-me também de um aluno que propôs uma reportagem sobre uma desastrosa expedição do navio da USP à Antártida, a partir de informações de um amigo que participou da viagem. O barco quase soçobrou porque só um dos lados tinha holofotes. O freezer pifou e por isso eles perderam todos os espécimes de “krills” que haviam coletado. Finalmente estourou uma epidemia de diarréia a bordo, mas nessa altura, o médico já havia saltado do navio em Porto Alegre. Sugeri ao aluno que checasse bem as informações e escrevesse a reportagem para o jornal do campus. Qual não foi a minha surpresa quando o aluno me entregou o que eu chamei de antimatéria.Um texto que escamoteava todo o que aconteceu, com expressões, como “apesar de alguns problemas, terminou relativamente bem a viagem do navio Besnard à Antártida..” Quando questionei o aluno ele respondeu que não queria se complicar criticando as autoridade da USP. Ou seja, esse jovem ainda nem havia começado a vida de jornalista e já tinha decidido que contar a verdade não faria bem à sua carreira.
Comecei a mapear o destino dos meus alunos já formados: a maioria engajou-se em projetos jornalísticos sem nenhuma ambição intelectual, filosófica ou política. E uma minoria significativa entendeu a profissão meramente como uma boa oportunidade de ganhar dinheiro. Foi bastante frustrante ver discípulos de grande valor intelectual, selecionados por um vestibular competidíssimo e rigoroso, e com os quais compartilhei boas experiências de jornalismo ainda no campus universitário e desenvolvi uma relação de amizade, se conformarem com uma visão tão banal dessa profissão que eu via como tão fascinante – e dessa forma aceitar uma proposta banal para sua própria vida. Para eles, a vida decididamente não era uma meta-narrativa. Para eles, a utopia era um conceito morto, desprovido de qualquer significado.
Há dois anos, para substituir um professor, comecei a ministrar a disciplina “ ética e deontologia do jornalismo” e, de novo, surgiram os sinais de que algo estava errado nos fundamentos do meu ensino. Num dos primeiros exercícios de classe, que funcionou como uma espécie de pesquisa de opinião dos alunos, ficou claro que para boa parte deles a existência de um código de conduta para jornalistas era um absurdo. Cada jornalista tinha o direito de pensar e agir a seu modo. Era a demonstração de que no ambiente da pós-modernidade é difícil haver um código de conduta porque não existe a aceitação de valores dominantes e rejeita-se a idéia da coerção, mesmo a coerção moral.
Naquela classe não havia patrões para imporem a auto-censura e nem os inspirava tanto assim a idéia do oportunismo, do jornalismo como uma forma de ficar rico. Esses alunos, ainda bem jovens, de primeiro ano, rejeitavam genuinamente a possibilidade de haver uma ética , porque isso estava em conflito com seus valores fundamentais, acima de tudo os valores ” individualismo” e “ tolerância” .
O desafio que temos pela frente portanto é de como reconstruir uma ética jornalística em tempos pós -modernos.Uma ética pertinente, que não paire no ar, descolada dos jovens, como uma mera cobrança de culpas que eles nem sequer reconhecem .. Os códigos de ética diferem de país para país, ou de tempos em tempos, justamente porque refletem mudanças de ênfase ou de articulação de valores das matrizes éticas de cada cultura ou de cada tempo. De hábitos novos, surgem novos valores, que por sua vez se aplicam na forma de normas de conduta, entre elas os código aplicados de ética, como são os diferentes código de ética profissionais, inclusive os dos jornalistas
Os diferentes códigos aplicados de ética são portanto exercícios datados de hegemonia ideológica. Seus processos de formulação e de legitimação se dão em contextos discursivos também datados. Hoje, vivemos um novo tempo discursivo, marcado pela negação das utopias e pela ausência de um padrão ético hegemônico, exceto no sentido metafísico de que a ausência de padrões também seria um padrão. Fatores objetivos contribuíram para a quebra de valores tradicionais. As revoluções da biotecnologia, que inovaram o campo da reprodução humana, alteraram definições fundamentais como as do início da vida e do momento da morte. O homem passou a ser definido como um animal simbólico e não como ser racional. Sua relação com a natureza passou a ser de uma solidariedade de destinos e não mais de dominação. O fracasso do socialismo real deu lugar à supremacia do neoliberalismo.
Nesse novo ambiente, as éticas socialmente constituídas cederam espaço a uma ética definida em torno de cada indivíduo, o que parece uma contradição em termos, um paradoxo, já que as condutas pessoais só podem ser avaliadas na sua articulação com outras condutas. Pode ser uma ética provisória. O fato é que hoje, dentro de limites bastante amplos, cada um tem o direito de pensar e agir como quiser. O exemplo mais expressivo está no campo sempre delicado da sexualidade: cada um pode adotar a preferência sexual que quiser. É também uma ética de muitos direitos e poucos deveres. Cada um tem o dever de pensar antes de tudo em si mesmo, em seu projeto de vida. Uma ética em que o dever é definido como negação do social, como celebração da individuação ética.
Não se trata da morte dos valores, mas da prevalência de determinados valores como tolerância, pluralismo, sucesso pessoal e liberdade individual que no seu conjunto e principalmente na forma como se articulam, definem uma matriz ética perversa pelos critérios de virtuosidade de nossa ética agora ultrapassada. Talvez devamos dizer que a ética da pós-modernidade é marcada também pelo declínio dos valores solidariedade e compaixão que marcaram a humanidade nos pós-guerra, e pelo predomínio de valores não-valores, como o ceticismo, o cinismo, a negação da utopia e da justiça social.
Não por coincidência são esses não valores que mais servem à etapa de super-concentração do capital e de supremacia dos interesses do capital sobre os interesses do homem, que marcam o mundo de hoje. Também nesse sentido, a aparente ausência de uma padrão ético dominante é apenas um verniz que encontre uma ética de antivalores que se encaixa perfeitamente numa ideologia neoliberal dominante.
Por isso, vivemos hoje a mais básica de todas as dicotomias da ética : a do indivíduo versus sociedade. Sendo os códigos morais socialmente constituídos, eles são hoje negados liminarmente por essa nova mentalidade que contesta a própria possibilidade de haver uma recomendação de conduta universal. Cada indivíduo, nesses tempos pós-modernos, teria a faculdade de decidir sua própria conduta, cultivar seus próprios valores. É a desqualificação do direito de exigir determinados comportamentos. É o retorno também a mais básica e fundamental de todas as discussões éticas: sobre a necessidade ou não de haver uma ética.
Se fôssemos reelaborar uma ética jornalística compatível com o novo ambiente ético, teríamos que partir dos valores dominantes dessa matriz e os rearticular de modo que percam seu sinergismo perverso. A tolerância poderia ser um dos valores dessa nova ética jornalística desde que no contexto de uma matriz ética em que não entre como antivalor, como negação da necessidade de outros valores, e sim como indicativo da necessidade de aceitarmos as diferenças como legítimas. A tolerância nesse contexto seria um valor importante para se antepor à inclinação à exclusão, típica do argumento neoliberal.
Certamente o sucesso pessoal, um dos valores centrais da ética neoliberali, poderia ser encaixado de tal forma numa matriz ética que se torne socialmente útil. Nos momentos de maior desespero ético, tenho apelado junto a meus alunos para o mais puro individualismo. Pergunto a eles: vocês querem ser mais um jornalista medíocre no meio dessa massa de jornalistas que nunca farão nada de importante na vida? Provoco seu brio. Machuco sua auto-estima. Pergunto onde foram parar seus sonhos? Se não tem sonhos como todos jovem tem, se não têm a ambição de serem os melhores, os mais bacanas, os mais bem sucedidos. É um argumento cativante porque parte da mentalidade existente, fundada na idéia do sucesso pessoal, do vencer na vida, chegando de modo natural à concepção do grande jornalista, ou seja do bom jornalista. E o bom jornalista é necessariamente um jornalista ético.
O passo seguinte é discutir o que é ser bom jornalista e como fazer sucesso na profissão, como se destacar da massa dos medíocres. Lembrei-me que costumava terminar meus cursos a alunos de quarto ano, quando eles já se preparavam para enfrentar a competição ferrenha no mercado, com uma aula em que dava dez sugestões para ser um jornalista bem-sucedido. Por exemplo, eu aconselhava os alunos a evitarem, de início, as grandes redações e procurarem se robustecerem em redações pequenas e em áreas não estratégicas do jornalismo. Dizia que jornalista bem-sucedido é aquele que sabe o que os outros não sabem, que tem fontes que os outros não tem. Ou seja, trabalhava em prol do jornalismo de qualidade, até mesmo validando a idéia perversa da competição.
A maioria das sugestões dizia respeito ao processo de acúmulo de conhecimento e de fontes, à criação de um saber e de uma competência jornalística. Dizia, por exemplo, que o jornalista no Brasil nunca deve entregar os documentos e materiais para os arquivos da empresas, e sim montar seu próprio arquivo. As empresas perdem esses materiais: além disso, te demitem sem mais essa ou aquela, arbitrariamente. E mais, eu dizia, em determinadas ocasiões faça reportagens aceite incumbências pesadas, para ter acesso a fontes e materiais que de outra forma seriam de acesso mais difícil. O saber passa a se localizar no jornalista e não nos arquivos das empresas. Assim o jornalista vai se tornando um sujeito do conhecimento e um ser epistêmico. Também um autodidata, que vai crescendo intelectualmente à medida que vai suprindo todas aquelas lacunas de conhecimento deixadas pelos currículos escolares, que, como nós sabemos, são montados de modo arbitrário.
O saber é alérgico ao mau jornalismo, à manipulação desonesta da informação. Por isso, as grandes empresas quando querem praticar o jornalismo desonesto, mandam repórteres jovens, que ainda não acumularam conhecimento, que não têm memória histórica. Certamente o saber pode ser um valor central a numa nova ética porque ele tem essa característica de tornar seu portador naturalmente resistente à desonestidade intelectual e à manipulação.
A escola tem um papel fundamental na procura de uma nova ética porque por meio dela se desenvolve no jovem a prontidão para o saber e o conhecimento. Esse “ser epistêmico” , como nós o chamamos uma vez numa das reformas de nosso currículo, vai estabelecer com o mercado um conflito ético feito de confrontos com editores autoritários e proprietários de mentalidade oligárquicas. Por um lado, isso exige do jornalista a adoção de certas estratégias de sobrevivência. Por outro lado, esse conflito altera a qualidade do próprio mercado. Trata-se, nesse sentido, de um conflito necessário, um conflito produtivo. E o fim da falsa discussão se a escola educa para o mercado ou contra o mercado.
É na escola também e apenas na escola, que o aluno ter hoje o aporte de conhecimento sobre as teorias da ética e da moral necessárias para seu posicionamento especifico no debate ético. Não temos aqui instâncias como comissões de ética ou direitos como a “cláusula de consciência”, que permitem o acompanhamento regular do debate ética durante a carreira do profissional. Os poucos ombudsman que temos, já está visto, limitam-se a corrigir erros localizados de informação ou erros gramaticais, com isso legitimando os grandes processos de supressão da verdade e da liberdade do jornalista.
Na busca de uma ética não metafísica, contemporânea e condizente com o ambiente discursivo da pós-modernidade, há três outros aportes possíveis. O primeiro é o que cobra a qualidade do jornalismo e da informação como um dos direitos do consumidor. O consumidor em duas dimensões; como indivíduo que paga por um produto e tem o direito de receber um produto de qualidade, e o consumidor como cidadão, membro de uma sociedade que tem o direito de informar e ser informado como parte de seus direitos de cidadania. Essas são abordagens compatíveis com a mentalidade neoliberal e portanto mais fáceis de serem trabalhadas.
Uma segunda abordagem é a denúncia da supressão da liberdade do jornalista no seu local de trabalho como um ato de “assédio moral”. Esse é um conceito novo, como se vê fundado no indivíduo e que naturaliza por assim dizer o direito político à liberdade intelectual. Por meio dele, pode-se fazer a crítica da práticas autoritárias nas redações a partir de um discurso tipicamente pós-moderno e, portanto, com legitimidade discursiva. Notem o paralelismo do conceito de “assédio moral” com o de assédio sexual.
Finalmente, quero terminar com o que considero a maior dimensão do problema ético que vivemos hoje no Brasil, sua dimensão política. Está claro, pela intensidade com que os meios de comunicação de massa são hoje manipulados pelos grupos dominantes para se manter no poder, que nosso principal problema ético hoje não é de natureza moral e sim política. A supressão dos ditames da ética jornalística clássica e a banalização do assédio moral nas redações existem porque são instrumentais no uso dos meios de comunicação de massa pelas classes dominantes para sua perpetuação no poder.
Isso significa que a luta por uma nova ética é também e acima de tudo uma luta política. E, portanto, essa luta tem que ser condicionada por algumas das leis da política, tais como ser referida a interesses sociais e desenvolver-se através de etapas e objetivos táticos e estratégicos bem definidos. Estar articulada às demais lutas políticas do momento. Lutas como pela instalação do Conselho de Comunicação Social, pela cláusula de consciência, pela limitação á concentração na indústria da comunicação. Na verdade, poderíamos organizar todas essas ações sob a retranca da ética. Porque, entre tantos paradoxos de nossos tempos, um deles é de que a pós- modernidade até aceita uma luta pela ética, desde que colocado em termos morais e pessoais não político-ideológicos.
De qualquer forma, a proposta de uma nova ética que resgate o pluralismo e da verdade a serviço público, e reelaborada como construção pedagógica de um novo jornalista contra-hegemônico, é hoje uma proposta necessária e importante, para a sociedade e para o jornalismo.
Uma nova ética para uma nova modernidade
Bernardo Kucinski,
São Paulo, abril de 2002
O jornalismo brasileiro vive hoje uma crise ética muito especial. Mais do que a incidência de desvios éticos pronunciados, a característica dessa crise é o vazio ético. Nas redações, deu-se uma rendição generalizada aos ditames mercantilistas ou ideológicos dos proprietários dos meios de informação. A liberdade de informar e o direito de ser informado, canonizados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e erigidos em ideologia dos códigos de ética jornalística nos mais diversos países, tornaram-se letra morta.
Não por acaso, esse novo ambiente ético no jornalismo é adequado aos valores do neoliberalismo econômico e foi instrumental ao seu processo de implantação. Nesse sentido é um equívoco considerar o vazio ético das redações uma disfunção do jornalismo. Ele existe porque tem uma função. E resulta de um embate ideológico que se dá além da esfera estrita da comunicação, um embate entre propostas divergentes de civilização e de organização.
No dia a dia, o vazio ético é reforçado por mecanismos diversos entre os quais o fim da demarcação entre o jornalismo e assessorias de imprensa, a fusão mercadológica de notícia, entretenimento e consumo; a concentração de propriedade na indústria de comunicação, a crescente manipulação da informação por grupos de interesse e principalmente a mentalidade pós-moderna.
Quando aceitei o convite, que tanto me honra, para esta aula inaugural , já tinha algumas dessas idéias delineadas. Mas o que me levou realmente a aceitar o convite de bom grado, como uma oportunidade feliz e não apenas como mais uma tarefa, foi um incidente ocorrido algumas semanas antes, que desencadeou um profundo processo de revisão das minhas ideais sobre o problema da ética no nosso jornalismo. É disso que pretendo tratar hoje. Antes, preciso explicar quais eram minhas ideais sobre a ética jornalística.
Confesso que era um fundamentalista no tocante à ética jornalística. Minha paixão pelo jornalismo foi tão absoluta que vesti a camisa da ética jornalística como uma ideologia, no sentido mesmo de camisa de força, conforme denunciado por Cornelius Castoriades. Ou seja, eu me colocava dentro da ética jornalística, e por isso não a podia ver criticamente ou como parte da ideologia de uma época ou fé, uma hegemonia datada. É bom que o jornalista se coloque dentro da ética de sua profissão, mas o professor e acadêmico deve poder olhá-la também de fora. Quem me chamou a atenção para o caráter “idealista” de minha postura foi o professor e colega Manuel Chaparro. Não o refutei na ocasião, mas sua observação foi fazendo um lento estrago nas minhas convicções.
Nessa concepção idealista, eu pregava que o jornalismo é uma atividade que se define por uma ética e não por uma técnica. E que essa ética é formada por um imperativo categórico, ou seja um preceito universal de conduta aplicável em todas as circunstâncias, e que não admite adaptação ou compromisso.É o imperativo categórico da verdade. Por esse imperativo, o jornalismo existe para socializar as verdades de interesse público, para tornar publico o que grupos de interesse ou poderosos tentam manter como coisa privada .O absolutismo dessa ética pode ser sentido por uma de suas implicações, a de que o jornalista não é responsável pelas conseqüências da divulgação de uma verdade de interesse público, seja ela qual for. Mas é responsável e até cúmplice das conseqüências de não ter socializado essa verdade de interesse público. Na minha ética jornalística absolutista, o valor responsabilidade não é simétrico.
É uma ética kantiana, na qual o valor verdade transcende todos os demais valores e se coloca de modo absoluto. E por que a ética kantiana se aplica ao jornalismo ? Porque se o jornalista começa a ponderar sobre as conseqüências das verdades que tem a dizer, sobre a conveniência de revelar parte da verdade e omitir outra, começa a assumir um outro papel social; deixa de ser jornalista para ser um censor e um juiz daquilo que o povo deve ou não deve saber. Na ética kantiana, não cabe esse julgamento. A verdade não pertence ao jornalista, que apenas recebeu um mandato da sociedade para procurar os fatos, e até certos privilégios éticos para executar esse mandato, como o direito de bisbilhotar na vida alheia ou de surrupiar certos documentos. desde que a serviço do interesse público.
Na cultura anglo-saxônica, em que essa ética jornalística prosperou e ganhou status de ideologia do jornalismo, há até mesmo duas etimologias para expressar o valor responsabilidade, na ética do jornalismo, em sua relação como valor verdade; fala-se que o jornalista deve ser “ accountable” por suas ações “, mas não é “ responsible” pelas verdades que revela. Poderíamos traduzir como: o jornalista é responsável por todos os seus atos, mas não pode ser responsabilizado pelas conseqüências de ter revelado verdades. Ou poderíamos dizer: a responsabilidade do jornalista esgota-se no ato de revelar a verdade.
Explico tudo isso que já se sabe, até de modo um pouco maçante, para mostrar que essa ética é fundamentalista: não permite nenhuma redução da verdade, nenhum compromisso, sob nenhum pretexto, porque por definição isso não é necessário, já que não é da conta do jornalista o que acontece depois que revelou o que tinha que revelar.
Essa busca de verdade de interesse público implica na adesão a uma deontologia, uma ética de procedimentos e que não se limita à técnica de bem escrever, abarcando todas as etapas da busca de verdade ou, para usar uma palavra mais precisa, da busca da veracidade dos fatos. E os fundamentos dessa deontologia são a honestidade intelectual e a perícia .O jornalista ético é o que age com a mesma honestidade intelectual que caracteriza o bom cientista. Aí está então, em resumo, o que vinha sendo minha visão da ética jornalística e a essência do que eu passava aos meus alunos e colegas sempre que havia oportunidade.
Tudo isso entrou em crise no incidente que vou relatar. Estava dando a penúltima aula de um curso de pós-graduação lato sensu denominado “Saúde e Cidadania”, de um módulo sobre jornalismo social. A aula tratava de ética. Minhas idéias provocaram uma reação alérgica imediata e muito forte que culminou com uma rebelião da classe. O mote geral era o de que eu estava exigindo posturas irreais, que em todas as redações o jornalista tem que fazer o que o patrão manda, e o que a publicidade manda. E choveram os relatos pessoais de incidentes de supressão de matérias, de opiniões, de trechos e de pautas.
Foi então que eu me dei conta que aquela era uma das classes mais homogêneas que eu já havia tido: eram quase todos jornalistas em serviço ativo, nas mais diversas redações, desde A TV Globo até revistas técnicas setoriais. E quase todos na faixa dos 30-35 anos de idade, ainda jovens mas não novatos. A maioria já tinha uns dez anos de experiência nas costas. Era a revolta de uma categoria toda contra a exigência de uma ética.
Perguntei a eles qual a diferença entre um médico que mata e um jornalista que mente? Ofendidos, não responderam. Disse a eles que navegar é preciso, viver não é preciso, ou seja, ninguém precisa ser jornalista. Também não gostaram. Responderam que tinham sim o direito de serem jornalistas sem precisarem ser éticos. Por necessidade de sobrevivência. Não sendo deles a culpa e sim do sistema, tinham esse direito. Finalmente disse a eles que eu não estava ali para fazer julgamentos morais, mas que eu só podia ensinar na escola uma ética, a do jornalismo livre e comprometido com o interesse público, que se desenvolveu nos melhores tempos do jornalismo Ocidental. Disse também que era um equívoco pensarem que a violência intelectual que cada um deles sofria no dia a dia das redações, não teria conseqüências de longo prazo. Disse que era um equívoco banalizarem essa situação.
O incidente me abalou profundamente, mas depois comecei a rememorar situações que já vinham de longe, e mostravam que havia algo de furado na minha posição fundamentalista de ou tudo ou nada. Lembrei-me da descoberta de que muitos alunos de jornalismo aprendem a cascatear, ou seja, a inventar matérias, já no primeiro ano do curso. Forjam entrevistas que não existiram. Cozinham matérias de outros sem se referir à autoria inicial. Digamos que isso está ainda no universo das malandragens da adolescência escolar, como o hábito de colar em provinhas. Mas a dimensão é outra, quando se sabe que cascatear é um traço marcante do jornalismo brasileiro.É possível até que esse verbo nem exista no jargão jornalístico de outras culturas.
Lembrei-me também de um aluno que propôs uma reportagem sobre uma desastrosa expedição do navio da USP à Antártida, a partir de informações de um amigo que participou da viagem. O barco quase soçobrou porque só um dos lados tinha holofotes. O freezer pifou e por isso eles perderam todos os espécimes de “krills” que haviam coletado. Finalmente estourou uma epidemia de diarréia a bordo, mas nessa altura, o médico já havia saltado do navio em Porto Alegre. Sugeri ao aluno que checasse bem as informações e escrevesse a reportagem para o jornal do campus. Qual não foi a minha surpresa quando o aluno me entregou o que eu chamei de antimatéria.Um texto que escamoteava todo o que aconteceu, com expressões, como “apesar de alguns problemas, terminou relativamente bem a viagem do navio Besnard à Antártida..” Quando questionei o aluno ele respondeu que não queria se complicar criticando as autoridade da USP. Ou seja, esse jovem ainda nem havia começado a vida de jornalista e já tinha decidido que contar a verdade não faria bem à sua carreira.
Comecei a mapear o destino dos meus alunos já formados: a maioria engajou-se em projetos jornalísticos sem nenhuma ambição intelectual, filosófica ou política. E uma minoria significativa entendeu a profissão meramente como uma boa oportunidade de ganhar dinheiro. Foi bastante frustrante ver discípulos de grande valor intelectual, selecionados por um vestibular competidíssimo e rigoroso, e com os quais compartilhei boas experiências de jornalismo ainda no campus universitário e desenvolvi uma relação de amizade, se conformarem com uma visão tão banal dessa profissão que eu via como tão fascinante – e dessa forma aceitar uma proposta banal para sua própria vida. Para eles, a vida decididamente não era uma meta-narrativa. Para eles, a utopia era um conceito morto, desprovido de qualquer significado.
Há dois anos, para substituir um professor, comecei a ministrar a disciplina “ ética e deontologia do jornalismo” e, de novo, surgiram os sinais de que algo estava errado nos fundamentos do meu ensino. Num dos primeiros exercícios de classe, que funcionou como uma espécie de pesquisa de opinião dos alunos, ficou claro que para boa parte deles a existência de um código de conduta para jornalistas era um absurdo. Cada jornalista tinha o direito de pensar e agir a seu modo. Era a demonstração de que no ambiente da pós-modernidade é difícil haver um código de conduta porque não existe a aceitação de valores dominantes e rejeita-se a idéia da coerção, mesmo a coerção moral.
Naquela classe não havia patrões para imporem a auto-censura e nem os inspirava tanto assim a idéia do oportunismo, do jornalismo como uma forma de ficar rico. Esses alunos, ainda bem jovens, de primeiro ano, rejeitavam genuinamente a possibilidade de haver uma ética , porque isso estava em conflito com seus valores fundamentais, acima de tudo os valores ” individualismo” e “ tolerância” .
O desafio que temos pela frente portanto é de como reconstruir uma ética jornalística em tempos pós -modernos.Uma ética pertinente, que não paire no ar, descolada dos jovens, como uma mera cobrança de culpas que eles nem sequer reconhecem .. Os códigos de ética diferem de país para país, ou de tempos em tempos, justamente porque refletem mudanças de ênfase ou de articulação de valores das matrizes éticas de cada cultura ou de cada tempo. De hábitos novos, surgem novos valores, que por sua vez se aplicam na forma de normas de conduta, entre elas os código aplicados de ética, como são os diferentes código de ética profissionais, inclusive os dos jornalistas
Os diferentes códigos aplicados de ética são portanto exercícios datados de hegemonia ideológica. Seus processos de formulação e de legitimação se dão em contextos discursivos também datados. Hoje, vivemos um novo tempo discursivo, marcado pela negação das utopias e pela ausência de um padrão ético hegemônico, exceto no sentido metafísico de que a ausência de padrões também seria um padrão. Fatores objetivos contribuíram para a quebra de valores tradicionais. As revoluções da biotecnologia, que inovaram o campo da reprodução humana, alteraram definições fundamentais como as do início da vida e do momento da morte. O homem passou a ser definido como um animal simbólico e não como ser racional. Sua relação com a natureza passou a ser de uma solidariedade de destinos e não mais de dominação. O fracasso do socialismo real deu lugar à supremacia do neoliberalismo.
Nesse novo ambiente, as éticas socialmente constituídas cederam espaço a uma ética definida em torno de cada indivíduo, o que parece uma contradição em termos, um paradoxo, já que as condutas pessoais só podem ser avaliadas na sua articulação com outras condutas. Pode ser uma ética provisória. O fato é que hoje, dentro de limites bastante amplos, cada um tem o direito de pensar e agir como quiser. O exemplo mais expressivo está no campo sempre delicado da sexualidade: cada um pode adotar a preferência sexual que quiser. É também uma ética de muitos direitos e poucos deveres. Cada um tem o dever de pensar antes de tudo em si mesmo, em seu projeto de vida. Uma ética em que o dever é definido como negação do social, como celebração da individuação ética.
Não se trata da morte dos valores, mas da prevalência de determinados valores como tolerância, pluralismo, sucesso pessoal e liberdade individual que no seu conjunto e principalmente na forma como se articulam, definem uma matriz ética perversa pelos critérios de virtuosidade de nossa ética agora ultrapassada. Talvez devamos dizer que a ética da pós-modernidade é marcada também pelo declínio dos valores solidariedade e compaixão que marcaram a humanidade nos pós-guerra, e pelo predomínio de valores não-valores, como o ceticismo, o cinismo, a negação da utopia e da justiça social.
Não por coincidência são esses não valores que mais servem à etapa de super-concentração do capital e de supremacia dos interesses do capital sobre os interesses do homem, que marcam o mundo de hoje. Também nesse sentido, a aparente ausência de uma padrão ético dominante é apenas um verniz que encontre uma ética de antivalores que se encaixa perfeitamente numa ideologia neoliberal dominante.
Por isso, vivemos hoje a mais básica de todas as dicotomias da ética : a do indivíduo versus sociedade. Sendo os códigos morais socialmente constituídos, eles são hoje negados liminarmente por essa nova mentalidade que contesta a própria possibilidade de haver uma recomendação de conduta universal. Cada indivíduo, nesses tempos pós-modernos, teria a faculdade de decidir sua própria conduta, cultivar seus próprios valores. É a desqualificação do direito de exigir determinados comportamentos. É o retorno também a mais básica e fundamental de todas as discussões éticas: sobre a necessidade ou não de haver uma ética.
Se fôssemos reelaborar uma ética jornalística compatível com o novo ambiente ético, teríamos que partir dos valores dominantes dessa matriz e os rearticular de modo que percam seu sinergismo perverso. A tolerância poderia ser um dos valores dessa nova ética jornalística desde que no contexto de uma matriz ética em que não entre como antivalor, como negação da necessidade de outros valores, e sim como indicativo da necessidade de aceitarmos as diferenças como legítimas. A tolerância nesse contexto seria um valor importante para se antepor à inclinação à exclusão, típica do argumento neoliberal.
Certamente o sucesso pessoal, um dos valores centrais da ética neoliberali, poderia ser encaixado de tal forma numa matriz ética que se torne socialmente útil. Nos momentos de maior desespero ético, tenho apelado junto a meus alunos para o mais puro individualismo. Pergunto a eles: vocês querem ser mais um jornalista medíocre no meio dessa massa de jornalistas que nunca farão nada de importante na vida? Provoco seu brio. Machuco sua auto-estima. Pergunto onde foram parar seus sonhos? Se não tem sonhos como todos jovem tem, se não têm a ambição de serem os melhores, os mais bacanas, os mais bem sucedidos. É um argumento cativante porque parte da mentalidade existente, fundada na idéia do sucesso pessoal, do vencer na vida, chegando de modo natural à concepção do grande jornalista, ou seja do bom jornalista. E o bom jornalista é necessariamente um jornalista ético.
O passo seguinte é discutir o que é ser bom jornalista e como fazer sucesso na profissão, como se destacar da massa dos medíocres. Lembrei-me que costumava terminar meus cursos a alunos de quarto ano, quando eles já se preparavam para enfrentar a competição ferrenha no mercado, com uma aula em que dava dez sugestões para ser um jornalista bem-sucedido. Por exemplo, eu aconselhava os alunos a evitarem, de início, as grandes redações e procurarem se robustecerem em redações pequenas e em áreas não estratégicas do jornalismo. Dizia que jornalista bem-sucedido é aquele que sabe o que os outros não sabem, que tem fontes que os outros não tem. Ou seja, trabalhava em prol do jornalismo de qualidade, até mesmo validando a idéia perversa da competição.
A maioria das sugestões dizia respeito ao processo de acúmulo de conhecimento e de fontes, à criação de um saber e de uma competência jornalística. Dizia, por exemplo, que o jornalista no Brasil nunca deve entregar os documentos e materiais para os arquivos da empresas, e sim montar seu próprio arquivo. As empresas perdem esses materiais: além disso, te demitem sem mais essa ou aquela, arbitrariamente. E mais, eu dizia, em determinadas ocasiões faça reportagens aceite incumbências pesadas, para ter acesso a fontes e materiais que de outra forma seriam de acesso mais difícil. O saber passa a se localizar no jornalista e não nos arquivos das empresas. Assim o jornalista vai se tornando um sujeito do conhecimento e um ser epistêmico. Também um autodidata, que vai crescendo intelectualmente à medida que vai suprindo todas aquelas lacunas de conhecimento deixadas pelos currículos escolares, que, como nós sabemos, são montados de modo arbitrário.
O saber é alérgico ao mau jornalismo, à manipulação desonesta da informação. Por isso, as grandes empresas quando querem praticar o jornalismo desonesto, mandam repórteres jovens, que ainda não acumularam conhecimento, que não têm memória histórica. Certamente o saber pode ser um valor central a numa nova ética porque ele tem essa característica de tornar seu portador naturalmente resistente à desonestidade intelectual e à manipulação.
A escola tem um papel fundamental na procura de uma nova ética porque por meio dela se desenvolve no jovem a prontidão para o saber e o conhecimento. Esse “ser epistêmico” , como nós o chamamos uma vez numa das reformas de nosso currículo, vai estabelecer com o mercado um conflito ético feito de confrontos com editores autoritários e proprietários de mentalidade oligárquicas. Por um lado, isso exige do jornalista a adoção de certas estratégias de sobrevivência. Por outro lado, esse conflito altera a qualidade do próprio mercado. Trata-se, nesse sentido, de um conflito necessário, um conflito produtivo. E o fim da falsa discussão se a escola educa para o mercado ou contra o mercado.
É na escola também e apenas na escola, que o aluno ter hoje o aporte de conhecimento sobre as teorias da ética e da moral necessárias para seu posicionamento especifico no debate ético. Não temos aqui instâncias como comissões de ética ou direitos como a “cláusula de consciência”, que permitem o acompanhamento regular do debate ética durante a carreira do profissional. Os poucos ombudsman que temos, já está visto, limitam-se a corrigir erros localizados de informação ou erros gramaticais, com isso legitimando os grandes processos de supressão da verdade e da liberdade do jornalista.
Na busca de uma ética não metafísica, contemporânea e condizente com o ambiente discursivo da pós-modernidade, há três outros aportes possíveis. O primeiro é o que cobra a qualidade do jornalismo e da informação como um dos direitos do consumidor. O consumidor em duas dimensões; como indivíduo que paga por um produto e tem o direito de receber um produto de qualidade, e o consumidor como cidadão, membro de uma sociedade que tem o direito de informar e ser informado como parte de seus direitos de cidadania. Essas são abordagens compatíveis com a mentalidade neoliberal e portanto mais fáceis de serem trabalhadas.
Uma segunda abordagem é a denúncia da supressão da liberdade do jornalista no seu local de trabalho como um ato de “assédio moral”. Esse é um conceito novo, como se vê fundado no indivíduo e que naturaliza por assim dizer o direito político à liberdade intelectual. Por meio dele, pode-se fazer a crítica da práticas autoritárias nas redações a partir de um discurso tipicamente pós-moderno e, portanto, com legitimidade discursiva. Notem o paralelismo do conceito de “assédio moral” com o de assédio sexual.
Finalmente, quero terminar com o que considero a maior dimensão do problema ético que vivemos hoje no Brasil, sua dimensão política. Está claro, pela intensidade com que os meios de comunicação de massa são hoje manipulados pelos grupos dominantes para se manter no poder, que nosso principal problema ético hoje não é de natureza moral e sim política. A supressão dos ditames da ética jornalística clássica e a banalização do assédio moral nas redações existem porque são instrumentais no uso dos meios de comunicação de massa pelas classes dominantes para sua perpetuação no poder.
Isso significa que a luta por uma nova ética é também e acima de tudo uma luta política. E, portanto, essa luta tem que ser condicionada por algumas das leis da política, tais como ser referida a interesses sociais e desenvolver-se através de etapas e objetivos táticos e estratégicos bem definidos. Estar articulada às demais lutas políticas do momento. Lutas como pela instalação do Conselho de Comunicação Social, pela cláusula de consciência, pela limitação á concentração na indústria da comunicação. Na verdade, poderíamos organizar todas essas ações sob a retranca da ética. Porque, entre tantos paradoxos de nossos tempos, um deles é de que a pós- modernidade até aceita uma luta pela ética, desde que colocado em termos morais e pessoais não político-ideológicos.
De qualquer forma, a proposta de uma nova ética que resgate o pluralismo e da verdade a serviço público, e reelaborada como construção pedagógica de um novo jornalista contra-hegemônico, é hoje uma proposta necessária e importante, para a sociedade e para o jornalismo.
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