A alma e vida do povo do Nordeste Goiano


A  Andra  Ribeiro publicou este texto sem título, disse que não é uma crônica, talvez não seja, pois capta a alma do povo do nordeste Goiano. Registro aqui no blog por que certamente servirá de dados para estudo antropológico e sociológico no futuro. 

Por Andra Ribeiro.

Um amigo meu , ontem, veio aqui em casa. Ele costuma beber umas biritas de segunda a segunda. Bateu umas 100 vezes no portão. Eu escutei as batidas com um aperto enorme no coração. Eu sabia que era ele. Só ele insistiria tanto assim. Geralmente, ele vem aqui pra pedir um real. Quando eu entrego a moeda, ele diz " Cê não pode me arrumar 5 real não"? Chamo- o de chato, insuportável. E ele fica ali, horas e horas, em pé, rindo da minha cara.
Às vezes, pra ele ir embora logo, eu dou os cinco reais. Às vezes, não dou nada. Falo que realmente não tenho, que não recebi o meu pagamento ainda. Quase sempre é verdade. Há muitos dias que , assim como ele, não tenho um centavo no bolso, ou o que tenho está reservado para a gasolina do mês.
Ele e eu somos amigos de infância. Lembro-me de vê-lo carregar os seus materiais escolares num saco de arroz tal qual o meu. Éramos iguais em muitas coisas na infância. Ele tinha sonhos...Ele apanhava da mãe e eu me lembro da justificativa dela " oh, menino malovido". Seus irmãos viviam quase sempre bêbados, eram bem maiores do que ele. Na escola, também conheceu o bullying, a bola, as brigas de volta pra casa. Ele, assim como eu, fez parte de uma escola excludente e segregacionista. Mas há um hiato que nos separou. Há um hiato que me separou de quase todos os meus amigos de infância. Ele conheceu, já na adolescência , ao invés das letras e dos números, a bebida, a indiferença, a falta de perspectiva para quase tudo. E quem poderia dizer que foi uma escolha infeliz? E quem poderia dizer que foi ele quem escolheu?
Eu, ainda sem saber como, sou uma das únicas crianças da minha antiga rua que terminou um curso superior. Não há receitas para isso. Acho que, na verdade, foi um milagre. Só sei que aos poucos fui me distanciando dos caras e das minas da minha quebrada. Não era uma distância física, era social. De amiga, eu virei uma espécie de professora. Era eu quem lia uma intimação, uma carta , resolvia um ou outro problema que envolvia uma leitura mais complexa. Acho até que a decisão de ser professora veio desse meu primeiro ofício. Com o tempo, as longas tardes de sol foram se transformando em um rápido " Bom dia" e às vezes nem isso.
Muita gente partiu e muita gente chegou.
A minha rua continua pequena, mas , exageradamente, todos os dias parece que alguém chega. E todos os dias tenho a impressão de que alguém foi embora. Ontem, foi o dia do meu amigo me fazer a milésima visita.
- Rapaz, tô aqui batendo na porta há um tempão.
- Uai, estou de quarentena.
- Que quarentena o quê, moça! Me dá um real aí, ou então, me paga um mototáxi.
- moço, tem nada funcionando na rua. O prefeito decretou lockdown.
- Lock o quê?
É lógico que ele não sabia o significado desse termo. E é fato que milhões de pessoas não sabem nem o significado e nem como farão para sobreviver nesse período de confinamento total.
- moço, e os 600 reais do governo? Já resolveu as pendências?
- tô sem CPF. Meus documentos estão increncados...
Tentei explicar a ele, mais uma vez, sobre os procedimentos para solicitar o auxílio emergencial. Ele disse que uma "chegada" estava tentando resolver a situação dele e que estava querendo apenas que eu pagasse o mototaxista.
O texto de hoje não é uma crônica, é uma constatação triste: Há, no Brasil, milhões de pessoas que acordaram famintos. E não é só fome de comida, é de educação. E não é só de educação, é de sonhos... Há fome também de palavras. Há sujeitos que não sabem e não entendem o que é um lockdown. Há pessoas que não falam a mesma língua do governo, do prefeito, da professora...E por não falarem, não são ouvidos, não são sequer lembrados. Há sujeitos que se alimentam de um gole de pinga de manhã e está tudo bem. Há sujeitos que nem são números, já que seus documentos estão " increncados".
Não sei ao certo o que me separou dos meus amigos de infância. Mas, me lembro das coisas que nos juntavam.
Na infância, bastava um quintal, uma rua de terra e uma mãe gritando pra gente tomar banho. Bastava amanhecer no outro dia, pegar o caderno amassado e sujo e colocar dentro do saco de arroz. Bastava vestir o uniforme encardido exigido pela escola. Era pra uniformizar o quê? Não precisava nem de café. A escola fornecia o lanche e o recreio.
Na infância, bastava sonhar e tudo se transformava em realidade. Mas, hoje, a realidade não basta. E eu nem sei se meus amigos ainda têm coragem de sonhar...
😭

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